segunda-feira, 26 de setembro de 2011

domingo, 2 de janeiro de 2011

Talvez

Saber que sua mãe estava segura era algo bom. Mas o porquê ela estava segura era sua maior preocupação.   
Sentia-se um pouco mal em pensar assim, mas sua única proteção era Kaled e ele era assustador demais para ela querer algo parecido protegendo sua família.
– Grembar já provocou muitas guerras em Selfor. A mais recente tem apenas treze anos. – Kaled manteve um tom solene enquanto falava – E como deveria ser junto com cada guerra um novo protetor chegava. – Dafne estava sentada com os joelhos ao peito enquanto o ouvia – Tem certas vantagens em ser o Protetor de Selfor, vantagens que seduzem...
– Que tipo de vantagens? – Dafne não conseguiu se conter.
– Muitas. Muitas vantagens, mas é claro que muitas perdas também... Umas dessas vantagens – Kaled a perfurou com o olhar – é o poder de proteger quem queremos.
Dafne meditou sobre o que ele falou por uns segundos, mas não conseguiu entender muito bem porque isso deveria ser uma grande vantagem. Pelas circunstancias ela sabia que era quem Kaled queria proteger. Mas por que Kaled queria proteger a ela? Mesmo se ela não tivesse boa memória, tinha certeza que se lembraria de ter conhecido uma criatura branca gigantesca e com olhos de fogo.
– Quando decidiu que queria me proteger Kaled? – Dafne deu voz a seus pensamentos – Como sabe que eu sou quem você quer proteger?
– Saber isso é uma das mais preciosas das nossas vantagens – Kaled continuava a sussurrar.
– Mas o que isso tem a ver com minha mãe? – Dafne estava se sentindo bastante desconfortável no assunto.
– As vantagens em ser um protetor podem ser bastante tentadoras – o próprio Kaled não parecia acreditar no que falava. – e para alguns são tão tentadoras que eles não querem deixar de ser quem são...
Dafne ficava mais confusa a cada palavra dele, mas procurou não interromper.
– O protetor antes de mim ficou em seu cargo por quatro guerras, ele pagou um preço caro por isso, mas conseguiu muito também... – a voz de Kaled carregava a mesma dor que seus olhos nesse ponto. – Íris foi quem primeiro esse protetor resolveu proteger. Ela não era mais do que uma criança quando isso aconteceu. Mas ele a protegeu cedeu muita coisa pra sua mãe, Dafne.
– Minha mãe está sendo protegida assim como eu? – Dafne sentiu o medo a dominar de novo.
– Não, não do mesmo jeito. O outro protetor ficou com seu cargo por tempo suficiente para que Íris não precisasse de proteção física.
Isso não tranqüilizou em nada o medo de Dafne.
– Os protetores não se chamam assim à toa. Todo nosso ser, tudo em nós exala proteção, e as pessoas que... que queremos proteger acabam recebendo boa parte dessa proteção.
– Como exatamente? – Dafne perguntou realmente curiosa.
– Os protetores têm sua magia, magia essa que passa para essas pessoas também. Íris é protegida pela magia dos protetores de Selfor. – Kaled olhava profundamente para Dafne. – O ultimo protetor ficou por quatro guerras... Quatro protegidos.
– Então a cada guerra você encontra quem deseja proteger? – Dafne continuava confusa.
– Não se sabe. Esse ultimo foi o único que ficou em mais de uma guerra.
– Mas ele não teve quatro protegidos? – Dafne perguntou.
– Sim, mas os últimos três ele já sabia que queria proteger.
– Pensei que fosse uma vantagem por ser algo que só se descobria quanto se é um protetor, qual a vantagem se ele já sabia quem queria proteger?
– Poder proteger – Kaled respondeu como se fosse a coisa mais obvia do mundo.
– Sim, mas... Ele já não era um protetor de Selfor? A magia já não estava com ele? – Dafne tentava formular tudo em sua mente, mas as coisas não se encaixavam de forma certa.
– Não. – Kaled agora estava aparentava estar feliz com o que ia falar – Um protetor se vai com a guerra e junto com eles a magia.
– E como isso volta em outra guerra? O que quer dizer com “Um protetor se vai”? – Dafne pode notar um tom de histeria em sua própria voz.
Kaled se deitou ao lado do lago ainda olhando pra ela. Dafne sentia a preocupação por aquele monstro aumentar em seu peito, mas algo na história não batia com suas preocupações. E também algo na imagem dele deitado na beira do lago estava errado.
Dafne percebeu de súbito que muita coisa estava errada ali. Por que ela não estava com frio? Por que o laginho não estava congelando? Era impressão dela ou Kaled estava diminuindo?
– Kaled... o frio... – Dafne tentava passar suas perguntas mentas para a fala, mas não conseguiu, porém o que falou foi o bastante pra Kaled entender.
– Eu disse. Aqui em Dasdev muita coisa estranha acontece. Boa parte da antiga magia de Selfor se encontra aqui. – Kaled voltou a ter o tom majestoso em sua voz – Esse laguinho, por exemplo, pode mostrar o que realmente somos... – Kaled inclinou a cabeça sobre o lago – e se ficarmos aqui por muito tempo, viramos o que realmente somos.
Dafne sentiu o coração disparar no peito quando certas suspeitas tomaram sua mente. Era muita coisa pra ela entende, ainda tinha muitas duvidas que precisavam ser respondidas.
Kaled se levantou.
– Vamos, She já deve ter controlado aquela euforia e eu tenho que partir. – Kaled falou enquanto se afastava do lago. Quando ele estava á uns cinco metros do lago seu tamanho foi aumentando e na grama aos seus pés se formava uma fina camada de gelo.
– Mas eu ainda tenho duvidas – Dafne criticou.
– She as responderá depois – Kaled se deitou – Agora vamos, não posso ficar mais tempo aqui.
– Mas o que você é Kaled? Quem são as outras três pessoas que o ultimo protetor quis proteger? E onde ele está? – Dafne deixava as perguntas fluírem pela sua boca assim que as pensava, enquanto montava Kaled.
– Seus irmãos são os outros protegidos – Kaled respondeu só a uma de suas perguntas e no segundo seguinte corria tão rápido que nada mais poderia ser falado sem que as palavras fossem caladas com o vento.
Enquanto Kaled corria por Dasdev, Dafne deixava seus pensamentos correrem por sua mente. Ela havia aprendido muita coisa naquele dia, mas todas essas coisas abriam duvidas maiores em sua mente. Sabia que iria voltar para a casa de She, também sabia que poderia aprender muito mais com ele do que Kaled permitiria estando por perto.
Assim que desceu dos ombros de Kaled, ele saiu correndo pelo mesmo lado de onde tinham vindo. Dafne não pode acreditar que ele se fora tão rápido, mas quando viu seu enorme corpo branco desaparecer na floresta, soube que não o veria por muito tempo.
Não sabia dizer por quanto tempo ficou parada onde Kaled a havia deixado, só sabia que o sol já tinha sumido há algum tempo. O aroma conhecido da sopa de She tinha invadido o quintal e alguns minutos depois Dafne pode ouvir a cadeira de balanço ranger atrás dela, mesmo assim ficou olhando pras sombras das árvores de cercavam a casa. Olhando o lugar por onde seu único ponto seguro daquela loucura havia sumido, engolido pelo terror que era Dasdev.
Todos os contos que ouvira quando criança a impediram de sair correndo atrás dele, e esses mesmo contos incentivaram sua mente a funcionar e a lembrá-la que nunca o alcançaria correndo com suas próprias pernas.
Também não sentiu lágrimas rolarem por seu rosto, mas sabia que isso era só uma questão de tempo, talvez quando realmente entendesse que ele se fora elas brotariam de seus olhos.
A cadeira de balanço atrás de si mantinha o rangido constante e irritante, muitas vezes a desconcentrando dos seus pensamentos e colocando-a de volta na realidade estranha em que se encontrava sua vida.
Dafne se chocou a notar que sua vida nunca mais seria a mesma. Nunca mais voltaria a ser maltratada pelos irmãos, não ouviria as ordens de sua mãe, não iria de vez em quando a cidade ouvir contos e lendas, em suma, sua vida não seria mais normal. Mas ela continuaria a viver isolada de tudo, ainda mais do que antes. Viveria com She o resto de sua vida apenas esperando Kaled voltar e dizer que a guerra tinha acabado? “Um protetor se vai com a guerra...” As palavras de Kaled foram um eco em sua mente, um arrepio passou por seu corpo ao pensar na possibilidade de ele não voltar. Lembrou da imagem na porta do corredor da cozinha. Um protetor assim como Kaled entre dois exércitos.
Quando o desespero tomava conta de sua mente Dafne percebeu que o rangido tinha parado. Desde quando não ouvia mais aquele som irritante? Pela primeira vez desde que Kaled se fora, Dafne se forçou a olhar pra trás.
She estava a menos de um metro dela, olhando pra ela como se avaliando alguma coisa e Dafne via constantemente em seus olhos desapontamento. Ela se irritou. Já não bastava tudo pelo que estava passando? Já não bastava estar longe de todos que gostava? Já não bastava Kaled a ter deixado? Agora teria que aturar aquele velho carrancudo?
– Não pensa em ficar aqui parada, pensa? – She perguntou conseguindo deixá-la ainda mais irritada.
– E se eu quiser ficar aqui? – Dafne retrucou brava – Vai tentar me impedir?
– Claro que não, minha obrigação é te manter aqui mesmo. – Essa parte da conversa confundiu a cabeça de Dafne. – Mas eu lamento, pois não queria ficar. – She falava olhando algo além dela, provavelmente o ponto onde Kaled havia partido.
– O que quer dizer? – Dafne perguntou confusa.
She olhou para ela e havia confusão em seus olhos também, confusão que foi sumindo enquanto um sorriso se formava nos lábios dele.
– Ah claro, você deve estar pensando que eu me importo que crie raiz em meu quintal, certo? – She parecia se divertir com a situação, Dafne só se confundia mais a cada palavra. – Olha menina, não sei você, mas essa guerra me chama. É hora de provar que eu não vim parar aqui por medo de algo, mas sim pra aguardar algo. Passar pelo que eu passei em Dasdev me deu conhecimentos que podem ser muito úteis em guerra...
– Está pensando em me levar pra guerra? – Dafne não notou emoção alguma em sua voz, e também não sabia o que sentir.
– Não é bem isso que eu quero. – She voltou a olhar além dela, seu rosto era sonhador, e isso passou para Dafne, que pela primeira vez olhava aquele rosto velho com alguma esperança. – Pensei em muitas coisas que estão estranhas nessa guerra, e acabei chegando a algumas conclusões. – Ele voltou a sorrir para ela – Mas creio só as revelar pra ti amanhã. Antes acho melhor ir comer algo e dormir bem. Eu vou te acordar mais cedo do que hoje.
– Tudo em. –Dafne concordou.
– Boa menina, - She sorriu – Pela manhã eu lhe conto algumas coisas que penso sobre tudo isso, e vou lhe pedir sua opinião.
Dafne sentiu esperança pela primeira vez em sua vida. Sentiu que as coisas estavam para mudar e Dafne estava gostando da mudança. Sorriu para She e entrou em casa, não se demorou a comer, lembrou de lavar a louça e foi para seu quarto.
A janela ainda estava aberta sobre a cama e Dafne se lembrou de que quando acordou Kaled estava lá. Como será que ela havia aberto a janela? Sentiu a depressão chegar de mansinho ao seu peito. Fechou a janela e se deitou. Procurou só pensar no que She iria lhe contar no dia seguinte, pensar que poderia ver Kaled mais cedo do que ele mesmo esperava. Será que ele ficaria bravo em vê-la longe de onde ele queria que ela estivesse?
Mas e se os planos de She não levassem a Kaled? O que será que ele estava pensando em fazer? O que ela mesma queria fazer? 
Era estranho ficar tão confusa a cerca de tudo que se passava em sua vida. Tudo sempre fora tão claro e simples, fazer o que a mãe mandava e tentar fugir o máximo possível dos irmãos. Agora simplesmente não sabia o que o amanhã ira trazer pra ela, esses dois últimos dias foram os mais estranhos, mas também os mais emocionantes de sua vida.
Quem sabe aqueles não foram só os primeiros de muitos dias de emoção, mas até que ponto tanta emoção pode ser bom? Dafne já não tinha sofrido muito no dia anterior? E hoje também não tinha sofrido com a ida de Kaled? O que mais ela poderia perder? O que mais ela poderia descobrir que a ferisse?
Afundou a cabeça no travesseiro para afugentar esses pensamentos. Talvez, só talvez sua vida não devesse fazer sentido mesmo. Talvez ela devesse parar de pensar tanto no que estava por vir, e se jogar as cegas em um túnel escuro que era seu futuro, sem medo do amanhã, até porque o que mais ela tinha a perder?
O garoto loiro não estava olhando pra ela, estava chorando embolado em um canto da caverna. Dafne se espantou ao descobrir que se encontrava em uma caverna. Tentou olhar em volta, mas era tudo escuridão, o único ponto luminoso o lugar era o garoto e ela só sabia estar em uma caverna pelos resmungos dele.
– Caverna estúpida e fria. – o garoto choramingava – lugar idiota, quero ir pra casa... pra casa... pra casa... – Dafne queria poder ajudá-lo em alguma coisa, pelo menos consolá-lo, mas não conseguia se mexer ou falar, só podia ficar parada olhando o garoto chorar.
– Chama essa caverna de idiota criança? – Dafne estremeceu com a voz que ouviu a voz fez estremecer toda a caverna. Seu tom era de deboche, mas o poder que a exercia era surpreendente. Dafne ficou olhando preocupada para o garoto, mas esse não deu sinal de ter ouvido a voz, o que deixou Dafne ainda mais preocupada. – Ousa me ignorar criança? O que espera? Quer o papai aqui para te salvar? – a voz terminou as perguntas com uma gargalhada que faz Dafne tremer da cabeça aos pés.
– Vá para o inferno – o garoto respondeu sem erguer a cabeça. Dafne ficou surpresa com a reação dele, ela mesmo que pudesse não conseguiria falar.
– Então a criança sabe falar além de chorar? – a voz continuou debochada – Mas, por favor, continua chorando, tenho certeza que seu pai não gostaria de respostas tão malcriadas, mesmo comigo. – outra gargalhada.
– Vá para o inferno. – o garoto repetiu, dessa vez com uma voz vai grosseira do que chorosa. Dafne continuava sem poder fazer nada além de observar, totalmente impotente. – E não ouse a falar do meu pai seu infeliz.
 – Eu? Infeliz? – seja o que for que estava falando ria bastante – Tenho certeza de ser a pessoa mais feliz de Selfor agora! – a voz parecia se divertir demais com a situação – Vamos lá pequeno Donavan, admita, seu pai está em minhas mãos. – mais uma gargalhada, Dafne estava petrificada.
O garoto se ergueu com raiva evidente no rosto, mas assim como Dafne, ele não pareceu saber de onde vinha a voz o que não o impediu do começar a socar as paredes da caverna.
A voz continuou com horríveis gargalhadas, enquanto o garoto socava as paredes até suas mãos sangrarem... Antes que a voz parasse de rir ou o garoto de socar, Dafne acordou.
Dafne acordou um minuto antes de She entrar em seu quarto a fim de acordá-la. Ele pareceu surpreso em vê-la acordada, mas contente. Para Dafne era estranho ver She sorrindo tanto pra ela, mas não desagradável.
Dafne comeu de novo da sopa, que pelo jeito era o único alimento que She sabia fazer, enquanto She ficava sentado olhando para janela sem nada dizer. Comendo em silencio, Dafne meditou sobre o sonho que teve. Era possível que aquele fosse mesmo o príncipe Donavan? Será que o dono daquela voz era Grembar? Dafne se encolheu.
– Algum problema com minha sopa? – She havia parado de olhar pela janela e a observava, ainda sorrindo.
– Não, - Dafne também sorria agora – nada de errado com a sopa, mas... – ela tentava fazer de tudo para esquecer seu sonho – só sabe fazer isso?
She riu alto com a pergunta. Deixando Dafne mais tranqüila e animando o ambiente. Quando ela terminou de comer o sonho já era um pensamento distante. She retirou o prato dela e ele mesmo lavou, parecia uma criança preste a ganhar o presente muito desejado e Dafne se pegou imaginando sobre o que ele tinha em mente.
Quando terminou de lavar a louça She se sentou ao lado dela e ficou em silencio encarando a mesa lisa. Sem se contentar com o silencio Dafne resolveu tomar a palavra.
– Não quero ficar parada aqui, She – Dafne sussurrava, mas She continuava a olhar a mesa. – Quero ajudar Kaled, não o quero em uma guerra sozinho.
– E o que você imagina poder fazer? – She estava sério de novo – O que uma menininha pode fazer em uma guerra?
Dafne não teve respostas para essas perguntas, mas algo no jeito que She falava dava a estender que ele tinha tais respostas, então ela permaneceu calada até ele resolver revelá-las.
– Dafne, escute, – She agora estava virado para ela – Kaled partiu para ver como andam as coisas com Angus. – Dafne não podia deixar de achar estranho o modo como ele falava do rei. – Como ele é um protetor pensa mais em estar no reino do que com os inimigos...
– Quer ir para os inimigos? – Dafne perguntou com os olhos arregalados.
– Não exatamente. – She estava, evidentemente, ansioso.  Kaled não veio junto com a guerra, ele apenas anuncia a chegada dela, e tem algo muito estranho no fato de Grembar não se pronunciar.
– O que achas que é? – Dafne continuava com o sussurro, como se mais alguém pudesse os ouvir – O que Kaled pensa disso?
– Ele diz que o silencio do Grembar é sinal de que ele está se mexendo para atacar. Por isso Kaled quer ficar perto do reino. – os olhos de She cintilavam – Não creio que ele esteja certo, tem algo muito estranho nisso tudo e eu preciso descobrir, Dafne.
She olhava para ela como se fosse sua ultima esperança. A cozinha pareceu encolher em volta de Dafne.
– Quero investigar isso, menina. – She se aproximou dela – Dasdev esconde muitos segredos, segredos que poucas pessoas além dos protetores conhecem, eu sou um que conhece...
– O que quer dizer com isso? – Dafne não pode deixar de imaginar a caverna de seus sonhos... a escuridão.
– Grembar sempre se ocultou nas sombras de Dasdev. Em lugares tão sombrios e escuros que os próprios protetores evitam. Quero investigar lá.
– Kaled ficaria furioso... – foi tudo que Dafne conseguiu sussurrar, coisas passavam por sua mente, os contos, seus sonhos, Donavan... – Vai querer resgatar o príncipe?
She mudou totalmente, seu rosto, seus olhos, tudo mudou, mas Dafne não saberia definir o que queria dizer essa nova expressão. Porém a mudança não durou muito, ele voltou a ter a face sonhadora.
– Termos o príncipe de volta é um motivo a menos para se declarar guerra. – She respondeu. – Uma vantagem a menos para Grembar.
– Está pensando em entrar em Dasdev? Encontrar Grembar e tentar sair de lá com o príncipe? – Dafne perguntou isso deixando claro o quanto achava absurdo. – Só mais uma dúvida, pretende sobreviver a isso? – Dafne pergintou sarcástica. – aprendeu muito com seus irmãos a agir assim.
Ele não respondeu a suas perguntas. Ficaram em silencio por mais tempo do que Dafne conseguia definir. Uma brisa fria entrava pela janela, no ar, um cheiro que chuva. Dafne se levantou e foi até a janela.
Nuvens densas estavam encima da casa, indo em direção a Dasdev. Não demorou muito e a chuva começou. No inicio a chuva estava fina, até mesmo agradável. Dafne continuava a pensar nas loucuras de She, ele podia ser mais velho, mas não parecia ter juízo. Encarou a floresta que cercava a casa, floresta que a separava de tudo que conhecia.
Em apenas três dias sua vida tinha mudado totalmente perante seus olhos. Não havia mais sua mãe para lhe dar ordens ou seus irmãos para lhe botar em problemas, e agora, não havia nem Kaled para lhe dar força. Dafne sorriu consigo mesma, lembrou do dia em que correu pela estrada chorando de medo por Chad, lembrou que ver a trilha que levava ao rio congelada, os olhos de Kaled e o medo que sentiu dele no primeiro instante. Agora tudo o que queria era ele ali de novo.
Kaled era monstruoso sim, mas era um monstro que queria o bem dela. Dafne não entendia muito bem tudo o que estava acontecendo, mas sabia que de alguma forma Kaled devia aparentar ser monstruoso, principalmente em uma guerra. Sim, ele deveria ser temido. Mais uma vez a imagem da porta apareceu em sua mente, aquele protetor, ele perecia ser mais monstruoso que Kaled, maior e mais forte também.
– De que guerra é o protetor que está pintado naquela porta, She? – ela resolveu perguntar enquanto observava a chuça ficar mais forte.
– Ela participou de cinco guerras atrás, – She falou no segundo depois que ela perguntou. – Foi a última guerra conta o povo do continente. O povo de onde Grembar veio.
– Você disse, ela? – Dafne perguntou se virando para ele. She parecia estar sofrendo, mas também parecia querer falar.
– Sim Mila foi a Protetora de Selfor na última guerra contra o povo do continente. Ela era poderosa, – os olhos de She brilhavam como se visse um sonho perante seus olhos – muito mais poderosa que esse bebê que é Kaled. – She sorria. Dafne se sentiu ofendida, mas permaneceu calada, ouvindo. – Mila defendeu todos bravamente e nos levou a vitória. – estranhamente Dafne percebeu que o orgulho que ela percebia em She agora qualquer um poderia ver nela ao falar de Kaled.
– Ela escolheu proteger você, She? – Dafne o incentivou a continuar.
She olhou confuso para ela, mas com o tempo pareceu notar alguma coisa e respondeu.
– Sim, digamos que ela escolheu me proteger. Humpft. – Dafne se assustou ao notar que ele não pretendia falar mais nada.
– O que aconteceu com ela? – Dafne tentou incentivá-lo de novo.
Os olhos de She passaram de dor a raiva, raiva contra Dafne. Seus olhos se fixaram ela e ela entendeu que corria perigo em ficar ali. Parada na frente da janela sendo encarada daquele jeito por She era assustador. Mais do que nunca desejou ter Kaled por perto. Queria o olhar dele sobre She para impedi-lo de fazer qualquer coisa contra ela.
Porém Kaled não estava com ela, Dafne teria que enfrentar She sozinha, Kaled a havia abandonado, deixando-a com alguém que sentia raiva dela. Por que She sentia raiva dela? Dafne pensou na ultima pergunta que fez “O que aconteceu com ela?”, Dafne sabia não ter culpa em qualquer coisa que tivesse acontecido com Mila, então... Por quê?
– Mila foi morta. – o olhar dele era macabro – Ela amava o que era. Gostava de falar do que aprendeu, contou a mim muitas coisas sobre a essência do que era, mas não contou só a mim... Mila tinha um grande amigo, amigo que ela contou quase tanto quanto contou a mim. Não tudo, mas o que contou foi o suficiente.
She encarava Dafne com desejo de morte, Dafne sabia disso, sentiu o medo tomar conta dela de novo e mais um vez desejou ardentemente que Kaled não tivesse partido. She ficou calado remoendo a raiva dentro dele, mas o que Dafne via não era só raiva, ainda havia dor ali e foi nessa dor que Dafne tomou confiança de que ainda poderia se sair bem na situação, então se arriscou a satisfazer sua curiosidade.
– Kaled me falou que tem muitas vantagens sedutoras em ser um protetor e tu me falaste que os protetores falam pouco de si. – Dafne arriscou o comentário para ver se ele falava mais alguma coisa.
– Realmente tem coisas tentadoras em ser um protetor... Quando você está numa situação em que essas vantagens são sedutoras. – para Dafne aquilo não fez muito sentido, mas foi bom, pois She parece mais sério e focado no assunto em vez de no sentimento. – Mila não chegou a ser protetora por sentir essa tentação. Ela explicou a mim e a esse amigo como virou protetora, contudo ela também nos contou como alguém poderia se tornar protetor pela força... – She olhou para ela novamente, essa vez além de raiva tinha nojo em seu olhar.
– Como? – Ela perguntou, mas perguntou temendo por Kaled.
– Matando. – o nojo era mais intenso em toda a face dele. O nojo era bom, agora não parecia que ele iria matá-la. – O melhor amigo de Mila a matou. Matou pela tentação das vantagens. Matou para satisfazer uma vontade dele. – Dafne ficou assustada ao ver que She estava chorando, mas queria saber mais, saber para tentar proteger Kaled.
– Só matando? – Dafne tremia da cabeça aos pés, mas dessa vez não era de frio. She olhou para ela entre as lágrimas, e havia indecisão no seu olhar, porém os sentimentos transbordavam dele e ele queria falar.
– Só matando? – Ele repetiu a pergunta dela com sarcasmo. – Me diga, menina. Qual é a principal característica de um protetor?
– Eles aparecem antes de uma guerra... – Dafne sussurrou em resposta, temendo errar.
– Correto! Mas um protetor protege Selfor – She falou dando ênfase na palavra “protege” – Vai contra a natureza de um protetor deixar Selfor em perigo.
Dafne não estava conseguindo captar as coisas muito bem, e soube que isso teria que mudar. Teria que conseguir entender cada detalhe da história dos protetores e de Selfor, para poder ajudar em alguma coisa. E soube também que a única pessoa que poderia ensiná-la era She. Olhou para o homem velho, mas forte e pelo jeito incrivelmente sábio. She era sem duvida uma personalidade forte, mas que guardava grandes sentimentos desagradáveis dentro de si, sentimentos esses que pareciam se voltar com tudo contra Dafne.
Ouvia chuva que caia furiosa do lado de fora da casa. Os sentimentos inundavam a cozinha, tantos os dela quanto os dele, deixando, para Dafne, um certo constrangimento no ar. She olhava pra ela como se avaliando algo, algo que Dafne não queria descobrir tão cedo. Pensou em como toda aquela conversa havia começado, e decidiu que havia que tomar uma decisão.
– Kaled vai odiar quando descobrir isso, mas... – Ela começou e notou que conseguiu focalizar a atenção de She nela. – Não quero ficar aqui parada. Quero aprender para poder ajudar em alguma coisa. – ficou nervosa antes de acrescentar a última parte, todavia soube ser necessária – Quero aprender o máximo possível para poder ajudar Kaled e retribuir a proteção que ele me dá.
O que ela falou sobre Kaled pareceu funcionar, a fisionomia de She mudou e mudou para a mesma sonhadora do inicio da conversa. Entusiasmada com a mudança dele Dafne permitiu-se relaxar e voltar-se novamente para a chuva. Chuva...
– She, – virou-se para ele de novo – como vamos ficar na floresta? – ela apontou para a floreta, mas querendo que ele notasse a chuva.
– Mila me contou muitas coisas sobre Dasdev e sobre muitos abrigos também. – She sorriu para Dafne e ela retribuiu o sorriso aliviada.
– Quando partimos? – Dafne perguntou.
– Vou preparar algumas coisas e partimos ainda hoje. – ele respondeu já se
levantando e saindo da cozinha.
Dafne ainda ficou ali parada encarando Dasdev. Aquela floresta parecia engolir tudo da velha vida dela, pareceu até natural Dafne mudar dentro dela. Algo naquele estranho ritual de sua vida parecia sagrado. Dasdev que antes era ponto de terror, agora seria seu lar.
Saiu da cozinha e parou diante da porta com a pintura de Mila. A protetora da imagem não parecia nem um pouco feminina. Dafne acariciou a figura, novamente lembrando-se de Kaled. Pensou no medo que sentia de algo acontecer a ele, pensou na fúria que ele ficaria quando se descobri que ela não estava onde ele a deixou. Pensou no sentimento que se acumulava dentro dela, em todo carinho que sentia pelo monstro que a arrancara de sua velha vida, e que a estava obrigando a descobrir coisas que a confundiam e assustavam.
She tinha um grande carinho por essa Mila, e Dafne pode sentir que o mesmo carinho crescia dentro dela para com Kaled, mas outras coisas também tomavam sua mente, como o antigo protetor.
Estava com uma intuição terrível sobre ele, mas não queria pensar nisso, tentou esquecer a raiva que She sentiu dela, e também esquecer o fato de os protegidos dele serem sua mãe e irmãos. Procurou focar seus pensamentos no que estava por vir, em como passaria por essa vida, pensou também em Donavan, lembrando das mãos dele sangrando enquanto socava as paredes da caverna, socando com raiva sem poder atingir o provocador.
Dafne afogou dentro de si todos os sentimentos possíveis, e tentou lembrar de alguns contos sobre Dasdev, depois de recordar do segundo já havia notado que péssima ideia fora aquela.
Dirigiu-se ao seu quarto e mais uma vez se deitou na cama macia. Chorou baixinho enquanto pensava em Kaled. Onde ele estaria? Ficou imaginando a fúria dele quando voltasse e não a encontrasse aqui. Quanto tempo ela e She ficariam em Dasdev? O que iriam fazer?
Dafne mais uma vez pensou em parar com as perguntas e se jogar sem medo no caminho escuro que estava se tornando seu futuro, mas deveria parar de pensar nas perguntas sobre seu passado? Passado que pelo jeito sempre fora escuro.
Talvez as respostas viessem de She, talvez esse tempo que passaria em Dasdev fosse esclarecer muita coisa, talvez toda essa loucura teria um final decente e normal. Talvez algum dia parasse de sofrer. Talvez.
A chuva já havia parado há muito tempo quando She entrou em seu quarto e avisou que iam partir. Não devia ser nem meio dia, mas como o céu ainda estava coberto de nuvens, Dafne não saberia dizer.
She carregava um saco nas costas e segurava um menor na mão.
– Coisas que vamos precisar no inicio da viagem. – Ele sorriu para ela enquanto lhe entregava o saco menor.
– Quanto tempo ficaremos em Dasdev? – Dafne perguntou pegando o saco.
– Bastante tempo, Dafne. – She seguiu para a varanda com Dafne no seu encalço.
Dafne parou na soleira da porta enquanto via She se dirigir para a entrada da floresta. “Bastante tempo, Dafne”, foram as palavras dele.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

DUVIDAS E MEIAS RESPOSTAS


Quando terminou de comer, She recolheu o prato e, novamente, mandou-a dormir. Não trocaram mais palavras e Dafne seguiu obediente até o quarto.
Chegando, fechou a porta e foi para cama, onde aproveitou pra fechar a janela. Deitou. A cama era incrivelmente macia, não tanto quanto os pelos de Kaled, mas era quente. Embrenhou-se entre as cobertas e ficou a lembrar das coisas do dia, antes do que imaginava, dormiu.
Um menino a olhava. Devia ter uns dois anos a mais que ela. Ele tinha o cabelo claro, um loiro quase branco, seus olhos eram de um azul penetrante, o menino poderia ser extremamente belo se não fosse pela cara de dor.
Seu rosto lindo estava contorcido em dor, os olhos azuis, tão belos, estavam arregalados em desespero. Sua boca falava algo que ela não podia ouvir. Ele estava desesperado e com muito medo. De repente, ele começou a correr até ela, corria de modo frenético, e nunca chegava.
Dafne notou que quanto mais ele corria, mas a distancia entre eles aumentava. O medo e o desespero passaram a tomar conta dela também. Tinha que saber o causava tanta dor ao menino, tinha que ajudá-lo. Correu. Correu até ele desesperada também, sabia que sua face agora também era de dor.
Acordou.
Estava suando muito e por um momento não reconheceu o quarto em que estava. Demorou um pouco, mas logo as lembranças do dia voltaram. Reparou que já estava escuro. Quanto tempo ficou dormindo? As lembranças do sonho tomaram sua mente. Lagrimas rolaram silenciosas por sua face, junto com o suor.
Permitiu-se chorar mais um pouco e logo caiu no sono de novo, mas agora não teve sonhos.
Acordou com o sol irritando seus olhos. O quarto estava bem iluminado e a janela bem aberta acima de sua cabeça. Mas mesmo com o sol brilhando o frio era avassalador. Enrolou-se mais nas cobertas e chamou por Kaled. Mal sussurrou o nome e a cabeça enorme dele ocupou toda a janela.
Sorriu consigo mesma e se levantou na cama para vê-lo melhor. Teve que ficar em pé para conseguir ver os olhos dele, olhos vermelhos sangue. Olhos que de inicio a assustaram, mas agora estava muito feliz por vê-los. Esticou a mão para tocar o pelo branco entre os olhos dele, mas ele se afastou.
– She acorda cedo sempre, no entanto consegui convencê-lo a te deixar dormir por mais tempo. – Kaled comentou com voz calma – mas não vai ser sempre assim. Tem que se acostumar a acordar tão cedo quanto ele. Ele que vai cuidar de ti e responder tuas perguntas. Vai explicar o porquê tu estás aqui e vai treiná-la.
– Treinar-me? – Dafne perguntou confusa.
Kaled sorriu. Os dentes tão brancos quanto seu pelo e por um breve momento ele abriu um pouco a boca, mostrando por dentro pura escuridão.
– Sim, mas isso também cabe a ele explicar. – continuou ele – eu vim por outro motivo... – seus grandes olhos vermelhos se focaram nela, e ela teve certeza de ver dor neles. – Vou ter que partir mais cedo do que imaginei. Só vou ficar contigo por hoje, menina.
– Não! Tinha dito que ficaria comigo por uns dias! Não me deixe sozinha com ele, por favor... – Dafne não gostou nem um pouco da idéia. Tudo já era estranho demais, sem ele ficaria ainda mais difícil. Kaled já era seu porto seguro no meio de toda loucura.
Sentiu um aroma muito bom invadir o quarto. E o estomago dela começou a resmungar. Esticou a mão mais uma vez para tocar Kaled e dessa vez ele não se afastou. Dafne deixou sua mãe afundar naquele pelo macio e frio.
Kaled era monstruoso. Ser todo branco e só os olhos vermelhos era assustador, mas mesmo assim, Dafne não queria ficar longe dele. Suportaria o frio! Qualquer coisa, desde que ficasse com ele. Os olhos de Kaled se fecharam ao seu toque, ele gostava. Permitiu-se fazer um carinho na criatura, agora só tinha uma leve noção de onde deveriam estar seus olhos. Deixou a mão vagar em um movimento de cima pra baixo. Tocou o focinho dele, era molhado, e tão branco como o resto de seu corpo. Acariciou ali de leve. Ficou assim por uns segundos, até que ele se afastou sacudindo a cabeça.
– Vá comer alguma coisa. Depois vamos discutir minha partida. – ele falou enquanto se afastava da janela. – She está te esperando. Vá de uma vez. – dizendo isto saltou para fora do campo de visão dela.
Dafne suspirou impotente, mesmo que quisesse que Kaled ficasse, o que poderia fazer? Ele era estranho pra ela, e uma criatura poderosa, sem duvida, ela nada poderia fazer pra mudar o caminho que ele quiser seguir.
Saiu do quarto em silencio, não queria chorar na frente de She e também não queria mais chorar de modo algum.
Parou no meio do corredor que levava á cozinha, ele era tão simples quanto a casa. No fim tinha a porta que levava a cozinha, mas ao longo de sua extensão tinha mais três portas, duas ao lado direito de Dafne e uma do lado esquerdo. As duas do lado direito eram iguais as do seu quarto, mas a do lado esquerdo era totalmente diferente.
Enquanto as outras eram lisas e simples, essa era toda ordenada com figuras fantásticas. As figuras representavam homens, aparentemente em guerra contra criaturas estranhas. Só havia uma criatura que aparentava estar do lado dos homens, e essa criatura lembrava muito Kaled.
Em toda a extensão da porta a guerra estava representada. Do lado direito as criaturas. Do lado esquerdo os soldados do reino e na frente dos soldados estava Kaled. Imponente e majestoso! Ficava entre os dois exércitos como se só ele fosse o bastante para impedir o exercito inimigo. As imagens tinham a cor da porta, um marrom gasto e sujo, mas isso não as estragava em nada.
Mas uma coisa era obvia, a porta era antiga. Quantos anos tinha Kaled? Ele realmente esteve em uma guerra? Dafne estremeceu ao imaginar Kaled entre esses dois exércitos, mesmo sabendo que ele era forte... Examinou o exercito que Kaled encarava. Criaturas horrendas tão monstruosas e impotentes quanto o próprio Kaled, mas com certeza eram mais feias e um pouco menores, Kaled conseguiria lutar com alguns facilmente, mas com todos eles...
Dafne tocou a imagem de Kaled, acariciando-a de leve e prestou atenção nos detalhes da imagem. Não era Kaled. A imagem da porta era, vendo bem de perto, mais velha que Kaled. A criatura da imagem, embora muito parecida, não era Kaled.
– Protetores de Selfor... – Dafne deu um salto de susto e se virou para ver quem falara. Era She. – aparecem em tempos de guerra, ou alguns anos antes. Os protetores nasceram com o reino. E mudam junto com ele. Com uma nova guerra um novo protetor aparece.
– Kaled... – Dafne estava mais confusa do que nunca. – Uma guerra? – ficou encarando She até ele resolver responder.
– Sim, Kaled anuncia uma nova guerra. Ele é o novo protetor de Selfor. – She explicou, sua face era muito séria. – Os protetores nunca revelam muito sobre si, mas Kaled é incrivelmente jovem, deve ser o mais jovem desde o acordo de Daus.
– Quem é Daus? – Dafne interrompeu.
– Daus foi o sétimo rei de Selfor, ele que fechou o acordo com os Protetores...
– Mas eles sempre foram chamados de “Protetores”? – Dafne interrompeu de novo. – isso pareceu irritar She.
– Vá comer, menina. Respondo tuas perguntas mais tarde. – She reponde ríspido seguindo para fora.
– Mas eu quero saber. Quero saber porquê estou aqui. Se Kaled é tão novo... O que vai ser dele em uma guerra, se...?
– Acho que deverias ter mais confiança nas capacidades de Kaled... Mais até do que ele mesmo tem... – She a interrompe. – Agora vá comer e nos encontre lá fora depois. – ordenou ele ao se afastar. – e não se esqueça, tem que lavar a louça. – com um ultimo sorriso pra ela, ele saiu.
Quando She saiu de vista, Dafne olhou mais uma vez as imagens da porta. O protetor da imagem era realmente mais velho que Kaled, devia ser mais forte também. Não conseguia parar de pensar em como Kaled ficaria em uma guerra, entre os exércitos, como naquela figura...
Sacudiu a cabeça para afastar a imagem. Foi para cozinha onde encontrou um prato sobre a mesa. Era a mesma sopa da noite anterior. Comeu o mais rápido que pode, lavou a louça e correu para fora.
She estava sentado em uma cadeira de balanço na varanda. O movimento suave da cadeira misturado com o pequeno rangido que ela causava quando se inclinava para frente dava um clima estranho no ar, ou talvez fosse só a ansiedade de Dafne que a fizesse pensar assim.
Parada na soleira da porta, Dafne ficou observando She. Ele permanecia de olhos fechados se deixando levar pelo movimento da cadeira. As rugas que se formavam na testa e nos olhos dele lhe davam uma aparência de fraqueza. Fraqueza essa que sumiu assim que ele abriu os olhos.
Seus olhos castanhos escuros se fixaram nela. Neles ela pode ver raiva, raiva por algo que ela não entendia. Dafne teve que desviar os olhos deles e encontrou os de Kaled.
A criatura branca estava sentada na grama á uns vinte metros dela. A distancia não diminuía em nada a intensidade do olhar dele. Mas mesmo intenso o olhar era indecifrável, Dafne não saberia dizer o que se passava na mente dele naquele momento.
Kaled desviou os olhos dela quando falou:
– Uma guerra está se formando em Selfor. O rei sofreu uma grande perde e já aponta o culpado. Não que ele não esteja certo...  – ele havia desviado os olhos dela, mas ela sabia que se os visse encontraria raiva nele também. – Angus é o atual rei de Selfor, ele tem três filhos – a dor na voz de Kaled era evidente. Dafne não teve coragem de interromper. Reiden é o mais novo, tem apenas três anos. Anne é a do meio, tem sete anos... – Kaled parou de falar por um tempo, depois continuou – Donavan é o primogênito. Estava com onze anos quando desapareceu.
– Desapareceu? – Dafne conseguiu falar olhando fixamente para Kaled.
– Sim – Dafne se virou para She, que tomou a palavra. – Donavan desapareceu e sobre formas muito estranhas, posso te afirmar. – She estava novamente de olhos fechados. Suas palavras eram pouco mais que um sussurro, e Dafne teve dificuldades de captar tudo. – Faz quase seis meses que Donavan sumiu, tempo suficiente para Angus clamar por guerra.
– Contra quem? – o estomago de Dafne borbulhava de ansiedade, algo naquela história deveria ter a ver com ela, e era esse ponto que ela queria chegar.
– Grembar é o principal inimigo de Selfor – a voz de She se elevou – mas o porquê de toda a inimizade você vai saber depois. O caso é que Angus tem certeza de ser Grembar quem sequestrou Donavan.
– E como ele conseguiu isso? – Dafne tinha milhares de perguntas em mente, mas não sabia quais fazer e como fazer a maioria.
– Ninguém sabe. Donavan foi dormir e não o acharam no dia seguinte...
– E como o rei culpou esse tal de Grembar? – Dafne interrompeu de novo.
– Grembar se acusou – She não pareceu se importar com as interrupções – dois dias depois do desaparecimento de Donavan, Grembar afirmou estar com ele. – todos ficaram em silencio por um tempo. Estava muito frio na varanda o que fez Dafne se virar para Kaled. Ele estava muito perto dessa vez, sentado sobre as patas traseiras na entrada da varanda. Ela tomou coragem e se sentou ao lado dele na grama. – Porem não fez ameaça alguma. O rei já perguntou o que Grembar quer, mas esse nada declara. Não deu mais sinal de vida.
– Seis meses e nada? – Dafne estava confusa. Sentiu Kaled estremecer ao seu lado.
– Não, não nada. – She continuou – Donavan desapareceu; dois dias depois Grembar afirma ser o responsável pelo sequestro; no quinto dia Kaled destrói minha horta... – She abriu os olhos para encarar Kaled. A raiva daquele olhar fez Dafne se aproximar ainda mais de Kaled, como se isso pudesse protegê-lo de alguma forma. – Ele ficou rondando minha casa por alguns dias, depois sumiu. E agora voltou contigo! – o tom de voz de She era de ironia. Ele realmente parecia estar muito brabo.
– E por que eu? – finalmente tinham chegado à parte que Dafne mais queria ouvir, mas assim que perguntou Kaled se afastou dela rudemente.
– Para ficar aqui comigo – respondeu She. – Kaled pareceu que descobriu muitas coisas desde o dia que foi embora e ele pareceu gostar do fato de te trazer pra cá.
– Mas por quê? – a mente de Dafne borbulhava tentando entender.
– Porque comigo é mais seguro. Digamos que eu sou uma pessoa que não gosta muito de confusão e...
– E eu achei que aqui era mais seguro pra ti – Kaled falava olhando pra She, mas se dirigindo a ela. – De inicio todos acharam que Grembar pediria algo em troca do garoto, mas ele não se pronunciou mais. – Kaled demonstrava gostar da história tanto quanto She. – Eu vaguei de norte a sul buscando saber o que estava acontecendo, buscando alguma informação do que Grembar planeja.
– Mas só me trouxe aqui por segurança? – Dafne podia estar confusa, mas notou que Kaled tentava mudar de assunto. Kaled se encolheu.
– Tem coisas entre os protetores, Dafne... Que não escolhemos... – Kaled agora olhava para ela. – coisas que não podemos mudar – seus grandes olhos vermelhos ardiam com uma emoção que ela não entendia. – uma dessas coisas me levou até você. Uma dessas coisas exige que eu a proteja.
– Tudo bem. – dói tudo que ela conseguiu falar. O sentimento nos olhos de Kaled queimava dentro dela também.
– She mora incrivelmente afastado de tudo. A primeira vez que vim pra cá não esperava encontrá-lo. Ele conseguiu montar moradia a noroeste de Selfor. – Kaled olhava pra ela vendo se tinha conseguido entender, mas para Dafne aquilo não quis dizer nada.
She soltou uma gargalhada, antes de comentar.
– Essa garota não sabe nada, não é? – ele ainda ria Dafne sentiu o rosto queimar. Kaled tinha se virado para She e um rosnado se formava em seu peito. – Diga-me, menina, – continuou She ignorando o rosnado de Kaled – tu já ouviste falar em Dasdev?
– Sim. – sim, Dafne já tinha ouvido falar em Dasdev. Em algumas das poucas vezes que sua mãe deixava ela e os irmãos irem para a cidade, ela ouvia história de Dasdev.
Pelo que se lembrava Dasdev era uma floresta que todos temiam, também lembrava que ficava bem longe de sua cidade.
– Claro que Dasdev tu deves conhecer. – She recomeçou a falar – esse povo adora contos de aventura ou que se tenha algo a temer. Dasdev nada mais é do que uma floresta bem densa. Guarda seus segredos, claro. Mas é apenas uma floreta.
– Dasdev é uma floresta incrivelmente densa. E guarda bem mais do que simples segredos, mas... – Kaled havia voltado a falar – mesmo com todos os perigos... Aqui é o lugar mais seguro pra ti, Dafne.
– Estamos perto de Dasdev? – Dafne sentiu a voz falhar.
– Está vendo essa mata que rodeia minha casa? – She perguntou entre uma gargalhada. – eu moro em Dasdev! Quer dizer, moro nos limites de Dasdev.
– Ele mora no lado oeste de Dasdev. Um lugar não conhecido pelo reino.
– Por puro medo! – She ainda debochava – esse povo é medrosa até seuas entranhas!
Um rugido escapou de Kaled. Dafne não estava gostando nada daquilo. Pela primeira vez desde que encontrou Kaled, ela desejou estar em casa. Desejou estar com a mãe e com os irmãos. Se lá não era seguro pra ela, o que garante que é seguro pra eles? Por que ela tinha que ter esse privilégio de estar segura e elas não?
– Quero ir pra casa – Dafne falou.
Kaled virou-se para ela em um salto.
– O que?
– Quero ir pra casa. – ela repetiu.
– Não, você não quer ir pra casa – havia desespero na voz de Kaled.
– Por que não, se lá não é seguro? – Dafne contrapôs.
– Justamente porque lá não é seguro que você vai ficar aqui! – A voz de Kaled era um trovão na pequena varanda.
– Mas se lá não é seguro pra mim também não deve ser seguro pra minha mãe e pros meus irmãos! – ela tentava se defender.
– Rá! Tenho certeza de que sua mãe está bem segura onde quer que esteja. – quem falou isso foi She, mas as palavras foram fortes o suficiente para chamar a atenção de Dafne e Kaled.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Dafne.
– Quero dizer...
– Nada! – Kaled foi mais rápido que ele. – Não quer dizer nada! – virou-se para Dafne – Tens razão. Talvez aqui não seja o lugar mais seguro pra ti.
– O que você quis dizer sobre minha mãe? – perguntou Dafne ignorando os urros de Kaled.
– Sua mãe é Íris, não? – She também ignorou Kaled, que urrou ainda mais alto.
– Sim, esse é o nome da minha mãe, mas o que quer dizer? O que sabe dela? – tudo podia ser novo, mas Dafne sabia que o perigo estava crescendo “Tudo começou há seis meses...”.
– Digamos que tua mãe tem seu nome marcado na história de Selfor. – havia um brilho perigoso nos olhos de She, como um berro para ela não acreditar em nada que ele falasse. Mas suas palavras eram estranhamente sedutoras para os ouvidos de Dafne. – Há mais segredos entre os protetores do que podemos entender... E alguns deles podem ser...
Dafne não ouviu mais nada, só sentiu um peso enorme a esmagando, não enxergou mais nada além dos pelos macios que grudavam em seu rosto, abafando qualquer som exterior. Sentiu o peito de Kaled tremer de forma violente, e agradeceu não poder ouvir aquele rugido.
Ficou por longos segundos sob o peso de Kaled sentindo seu corpo congelar com o frio.
Assim que Kaled saiu de cima dela. Dafne procurou com os olhos por She. Não havia sinal dele na varanda.
Kaled a observava sem nada falar. Dafne não sabia o que pensar. Kaled não poderia ter feito nada a She enquanto estivesse encima dela, ou...
– Ele foi para dentro. – Kaled atrapalhou seus pensamentos – Quero conversar contigo a sós.
– Vai me explicar o que ele quis dizer sobre minha mãe? – Dafne perguntou bufando.
– Vou tentar – prometei Kaled se deitando ao lado dela.
Dafne já conhecia aquela linguagem corporal e montou nas costas dele. Ele não perdeu tempo, assim que ela sentou, ele levantou e seguiu em direção a floresta “Dasdev...”, Dafne se prendeu com mais força contra o corpo dele.
– Não quero ir pra lá – Dafne comentou com voz falha.
– Quero te explicar algumas coisas, – Kaled retrucou – e dentro de Dasdev. Tem lugares mais apropriados que aqui.
– Mas...
– Não vou deixar nada acontecer contigo, Dafne. – Kaled não olhava pra ela, contudo ela sabia que ele não estava mentindo.
De inicio Kaled não correu, mas quanto mais entravam na mata, mais rápido ele andava, até que Dafne não conseguia definir a paisagem em que passavam. Estavam correndo. Os borrões que Dafne conseguia captar ajudavam a imaginação dela se precipitar a criar imagens terríveis que lembravam e muito os contos de terror contados em sua cidade.
Quando Kaled finalmente parou, Dafne contemplou uma pequena cascata d’água e um laguinho. O ambiente era muito lindo e desviou a atenção de Dafne quanto a todos os acontecimentos do dia.
Kaled deitou a alguns metros do lago e ela saltou para o chão. Dafne foi até a beira do lago e ficou observando os pequenos peixes vermelhos que nele viviam.
Um cardume desses peixes nadava bem à frente de Dafne. Suas escamas cintilavam por todo o lago dando uma luz especial no lugar. O reflexo de Kaled apareceu sobre a água e os peixes se dispersaram para longe.
– Esse lugar é lindo! – Dafne sussurrou observando agora o reflexo de Kaled.
– Sim, é realmente um lugar muito lindo. – a voz cavernosa dele não combinava em nada com o ambiente, mas ela tentou encaixá-la mentalmente ao lugar. – contudo até mesmo esse lago tem seus segredos. Dasdev não deve ser frequentada por quem não a conhece bem.
– E você a conhece bem, Kaled? – Dafne continuava a mirar o reflexo. O branco majestoso dele também cintilava no lugar. Ou o brilho estava sempre com ele?
– Conheço melhor do que qualquer um. – ele afirmou.
– Quantos anos tens, Kaled? – Dafne perguntou se virando para encará-lo.
Dafne se assustou ao perceber dor nos olhos dele. Dor, tristeza, confusão, Kaled estava sofrendo. Há quanto tempo será que ele sofre?
– Eu tenho muitos e poucos anos, Dafne. Mas não quero explicar nada sobre mim agora. – ele respondeu com calma e com a dor ainda forte em seus olhos.
– O que quer explicar? Algo sobre minha mãe, talvez? – Dafne perguntou esperançosa. Nunca viu nada de mais em sua mãe, mas nada mais era o mesmo desde que conheceu Kaled. Por que o velho mundo que conhecia também não deveria surpreendê-la? 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

She


        – Por que me trouxe com você? O que é você Kaled? – Dafne perguntou empolgada com o fato de ele estar tão amigável.
         – Logo vais descobrir as respostas para todas as tuas perguntas. Não pense nelas agora. – Ele respondeu com calma. – Você deve estar com fome, não? – Kaled mudou subitamente de assunto.
         – Um pouco, sim. – Respondeu Dafne ainda sorridente. Ela estava gostando da mudança repentina em sua vida. Sentia por sua mãe e seus irmãos, mas nunca se sentiu tão viva como com Kaled e não se arrependeu de sua escolha.
     – E tem que se secar ou vai ficar resfriada. – Quando falou isso os olhos de Kaled brilharam em divertimento, como se lembrasse de uma piada interna. – Tenho um amigo que mora aqui perto. – Parou um pouco em sua fala como se para escolher melhor as palavras. – Esse meu amigo é um tanto rígido com algumas regras e você terá de lidar com elas por algum tempo.
           – Algum tempo? – Dafne perguntou confusa. – Você vai ficar comigo por esse tempo?
        – No inicio sim, mas não ficarei muito. Tenho que resolver umas coisas e voltarei mais tarde pra te buscar. – Os olhos dele demonstravam, pela primeira vez naquela dia, um certo carinho. – Esse meu amigo vai cuidar de ti e responder, a maneira dele, suas perguntas. Só lhe peço que seja educada e faça o que lhe é mandando.
          – Não estou gostando disso. – Admitiu Dafne.
Kaled aproximou-se bem dela e baixando a cabeça até sua altura, tocou o focinho na testa de Dafne e falou com voz suave:
         – Não se preocupe, Dafne, eu cuidarei de ti e quando precisar é só chamar por mim que eu virei, certo?
      – Certo. – Dafne respondeu incerta, mas com calma, o frio e a maciez do pelo dele a deixavam tranquila.
        Ele se afastou um pouco e deitou na grama quase congelada. O que era um convite para ela subir.
        – Por que me fez descer pra subir de novo? – perguntou ele se irritando e imaginando ser jogada em um rio de novo.
        – Para ver se ia conseguir descer. Seria constrangedor demais perto desse me amigo.
       – E qual o nome desse seu amigo? – Perguntou Dafne ainda irritada, mais já subindo nele.
       – She.
       – She? Que tipo de nome é esse? She? – Perguntou Dafne realmente curiosa.
      – Pergunte à ele. – Kaled respondeu alegre – Só não garanto que ele vá responder. – Kaled se ergueu e começou a correr.  
      Dessa vez a corrida foi mais curta e os levou para uma casinha simples. Dafne nunca se preocupou com a localização dos lugares, e por isso só teve noção de que estava bem longe de casa.  A casinha que ela via não lembrava em nada a sua, que era caída aos pedaços e mal conservada, a que via agora, embora pequena e simples, era bem agradável e bem cuidada.
    Quando Kaled deitou, ela conseguiu descer facilmente, mas não saiu de perto dele. Seguiram em silencio até estar bem perto da casa. Sem precisar dizer uma palavra, assim que chegaram a dois metros, um homem alto e com os cabelos um tanto grisalhos, mas ainda era forte e devia estar perto dos cinqüenta anos.
       Seus cabelos eram escuros, pelo menos em alguns fios, pois o resto já estava cinza. E seu corpo era esbelto. Estava com uma cara realmente séria quando veio recebe-los. Olhou para Kaled primeiro e só depois notou Dafne. Sua cara não melhorou em nada ao vê-la. Olhou novamente para Kaled um tanto confuso e ainda sério.
        – She, meu amigo. – Começou Kaled. – Quanto tempo que não o vejo!
     – Um bom tempo, realmente. – Retrucou She, com cara de quem não estava gostando muito do reencontro.
      – Essa aqui é Dafne. – Continuou Kaled, ignorando a antipatia do amigo. – Gostaria que ficasse com ela por uns tempos. É uma boa menina, garanto.
       – E eu teria escolha? – She perguntou parecendo realmente curioso.
     – Claro que não. – Kaled pareceu bem contente com a resposta que deu. E She suspirou irritado.
      – Entre, menina. Vou ver aonde podes tomar um banho e ver se acho algo para vestires. Esse animal, por acaso, a tocou em algum rio? – S He perguntou para Dafne enquanto abria a porta para ela.
      – Sim. – Respondeu Dafne sem sair do lado de Kaled. Aquele homem conseguia assustá-la mais do que o próprio Kaled. 
      – Entre, Dafne. Vou esperar por ti aqui, certo? – Propôs Kaled, sentindo o medo dela. – She vai dar o que comer e o que vestir pra ti. Ele é meio rabugento, mas é um homem de bom coração.
   – Rá! Muito engraçado, Kaled! Quando começou com essas piadas tão fabulosas? – Retrucou She irritado, que ainda estava com a porta aberta.
     Dafne olhou mais uma vez pra Kaled, e este acentiu. Então ela foi em direção ao homem que lhe deu passagem para casa. 
     A casa de She era bem aconchegante e até bonita. Tudo estava arrumado e limpo. She fechou a porta e passou a sua frente, indo em direção a outro cômodo da casa, sumindo da vista de Dafne, que ficou parada em frente à porta fechada.
    She surgiu em sua vista novamente, agora tinha uns panos em sua mão e disse serem roupas pra ela.
     – Aquele é seu quarto. – Disse apontando para o cômodo de que sairá. - Nele tem uma bacia com água pronta para um banho. Tome seu banho e depois venha comer, vou preparar algo.
       Sem dizer mais nada, foi para outro lugar.
     Dafne foi com calma até o quarto. Ele era bem simples, mas mesmo assim era melhor do que o que tinha na casa de sua mãe. O quarto possuía como moveis uma cama, uma mesinha, uma cadeira e uma bacia enorme.
     A cama esta logo abaixo da janela e de frente para a porta. A mesinha com a cadeira estava bem ao lado da cama. E a bacia estava no quanto esquerdo à porta. Dafne fechou a porta e foi ver a bacia. Como dissera She, a bacia estava cheia de água e incrivelmente morna. Para Dafne isso foi um convite maravilhoso. Tirou suas roupas e botou sobre a cama junto com as que o She lhe havia entregue, e foi para água.
      Morna. Isso era realmente maravilhoso, depois de todo o tempo que passou com Kaled, algo morno era o paraíso. Pouco a pouco suas pernas perderam o roxo que estavam pelo frio. O morno da água também ajudou a clarear seus pensamentos que estavam confusos pelo medo de Kaled e a emoção que passou desde cedo.
      A bacia era grande o bastante para ela ficar com a cabeça submersa. E assim ficou por um tempo. Pensou bastante no que aconteceu, e não viu nenhuma lógica. Porem soube de imediato que não fazia questão de voltar pra casa.
      Era bem tosco sair por aí com um lobo gigante e gelado. Se a mãe soubesse com certeza ficaria brava, mas ela já tinha notado que ele não pretendia devora-la. O que não mudava em nada o fato de que sua mãe não gostaria.
      Tirou a cabeça da água e por isso demorou um pouco para notar que estava chorando. Como sua mãe ficaria quando notasse que Dafne não voltaria pra casa essa noite? E quando a procurasse e não a achasse? Kaled correu realmente rápido, nunca que sua mãe ou seus irmãos iriam encontra-la, nem se quisessem.
     Um aroma gostoso passou por suas narinas e quase ao mesmo tempo seu estomago roncou.
        Saiu da água e foi ver as roupas que estavam na cama. Dentre elas achou uma toalha pra se secar. As roupas nada mais eram do que uma camisa enorme, pelo menos pra ela, e uma calça cortada para ficar do seu tamanho. Mesmo com o corte na calça não mudava o fato que a cintura era muito maior que a dela. Foi nisso que ela também notou uma corda sobre a cama. Usou-a para prender a calça.
       Achando-se ridícula com aquela roupa, saiu do quarto e seguiu o cheiro gostoso até o que devia ser a cozinha. She preparava algo no fogão a lenha e se notou a chegada de Dafne não demonstrou.
      Sem que ela pudesse controlar, seu estomago roncou. Isso despertou a atenção de She, mas quando olhou pra ela estava indiferente.
        – Sente-se, logo lhe sirvo algo pra comer. –  disse ele, voltando a olhar pro fogão.  
        Dafne não respondeu, mas se sentou obediente. Sentou-se em uma das quatro cadeiras de madeira que rodeavam a mesa. Está mesa se localizava no centro da cozinha, e era redonda a cadeira em que Dafne sentou estava de frente para janela. Ela olhou nervosa, mas não viu o que queria. Kaled.
       She colocou a sua frente um prato. Nele fervia uma sopa de ótima aparência, que fez Dafne se exaltar de prazer. Logo que She lhe entregou uma colher, começou a devorar a sopa. Não reparou em mais nada além de sua fome por um tempo. O prato ficou vazio, mas a fome não passara.
       She pareceu notar isso, recolheu o prato e serviu mais á ela. Desta vez Dafne se portou melhor, comeu com mais calma e olhando de vez em quando para She. Este estava parado de encosto a pia e não tirava os olhos de Dafne. Estudava-a em detalhes com seus olhos, eram olhos espertos e duros. Dafne não pode deixar de sentir mais medo.
         – Onde está Kaled? – perguntou Dafne para afastar o medo.
         – Lá fora, em algum lugar que não vá congelar minha horta. – respondeu She seco e sem tirar os olhos dela.
          – O que é Kaled exatamente? – Dafne perguntou criando coragem. Dessa vez ele desviou o olhar antes de responder.
         – Kaled é o que é. – começou ele meio confuso com a pergunta. – E não creio que esteja na hora de pensar nisso, mas cedo ou mais tarde vai saber, e prefiro que seja por ele e não por mim. – She concluiu por fim.
         – Ele disse que logo vai embora... – Dafne aproveitou. Ele voltou-se para ela novamente. – E que me deixaria aqui.
        – Sim, ele também me disse isso. – Agora She estava irritado. – Não tenho escolha quanto a isso, mas vou fazer o possível em sua estadia aqui.
          – E de quanto tempo estamos falando? – Dafne perguntou, chegando ao ponto que temia.
She olhou pra ela. Dessa vez seu olhar era mais calmo, como se soubesse o que a preocupava.
           – Não creio que voltarás pra casa, menina – disse ele por fim.
          – Não? Mas por que não? O que querem comigo afinal? Por que Kaled me trouxe aqui? – agora Dafne estava assustada e tremia. O choro ia voltar.
          – Kaled a trouxe porque acha que você é o que procuramos, e admito ter que concordar. Só não esperava tão jovem e isso vai nos custar tempo. – ele ainda estava com a boca aberta, como se fosse continuar. E continuou, mas com a face mais calma. – Termine de comer, e depois vá dormir um pouco. Essa corrida com Kaled deve ter sido cansativa, não? Deixe as perguntas com o tempo.
          – Está bem. – concordou Dafne, voltando a olhar o prato. Ainda estava confusa e com medo, mas não chorou.