domingo, 2 de janeiro de 2011

Talvez

Saber que sua mãe estava segura era algo bom. Mas o porquê ela estava segura era sua maior preocupação.   
Sentia-se um pouco mal em pensar assim, mas sua única proteção era Kaled e ele era assustador demais para ela querer algo parecido protegendo sua família.
– Grembar já provocou muitas guerras em Selfor. A mais recente tem apenas treze anos. – Kaled manteve um tom solene enquanto falava – E como deveria ser junto com cada guerra um novo protetor chegava. – Dafne estava sentada com os joelhos ao peito enquanto o ouvia – Tem certas vantagens em ser o Protetor de Selfor, vantagens que seduzem...
– Que tipo de vantagens? – Dafne não conseguiu se conter.
– Muitas. Muitas vantagens, mas é claro que muitas perdas também... Umas dessas vantagens – Kaled a perfurou com o olhar – é o poder de proteger quem queremos.
Dafne meditou sobre o que ele falou por uns segundos, mas não conseguiu entender muito bem porque isso deveria ser uma grande vantagem. Pelas circunstancias ela sabia que era quem Kaled queria proteger. Mas por que Kaled queria proteger a ela? Mesmo se ela não tivesse boa memória, tinha certeza que se lembraria de ter conhecido uma criatura branca gigantesca e com olhos de fogo.
– Quando decidiu que queria me proteger Kaled? – Dafne deu voz a seus pensamentos – Como sabe que eu sou quem você quer proteger?
– Saber isso é uma das mais preciosas das nossas vantagens – Kaled continuava a sussurrar.
– Mas o que isso tem a ver com minha mãe? – Dafne estava se sentindo bastante desconfortável no assunto.
– As vantagens em ser um protetor podem ser bastante tentadoras – o próprio Kaled não parecia acreditar no que falava. – e para alguns são tão tentadoras que eles não querem deixar de ser quem são...
Dafne ficava mais confusa a cada palavra dele, mas procurou não interromper.
– O protetor antes de mim ficou em seu cargo por quatro guerras, ele pagou um preço caro por isso, mas conseguiu muito também... – a voz de Kaled carregava a mesma dor que seus olhos nesse ponto. – Íris foi quem primeiro esse protetor resolveu proteger. Ela não era mais do que uma criança quando isso aconteceu. Mas ele a protegeu cedeu muita coisa pra sua mãe, Dafne.
– Minha mãe está sendo protegida assim como eu? – Dafne sentiu o medo a dominar de novo.
– Não, não do mesmo jeito. O outro protetor ficou com seu cargo por tempo suficiente para que Íris não precisasse de proteção física.
Isso não tranqüilizou em nada o medo de Dafne.
– Os protetores não se chamam assim à toa. Todo nosso ser, tudo em nós exala proteção, e as pessoas que... que queremos proteger acabam recebendo boa parte dessa proteção.
– Como exatamente? – Dafne perguntou realmente curiosa.
– Os protetores têm sua magia, magia essa que passa para essas pessoas também. Íris é protegida pela magia dos protetores de Selfor. – Kaled olhava profundamente para Dafne. – O ultimo protetor ficou por quatro guerras... Quatro protegidos.
– Então a cada guerra você encontra quem deseja proteger? – Dafne continuava confusa.
– Não se sabe. Esse ultimo foi o único que ficou em mais de uma guerra.
– Mas ele não teve quatro protegidos? – Dafne perguntou.
– Sim, mas os últimos três ele já sabia que queria proteger.
– Pensei que fosse uma vantagem por ser algo que só se descobria quanto se é um protetor, qual a vantagem se ele já sabia quem queria proteger?
– Poder proteger – Kaled respondeu como se fosse a coisa mais obvia do mundo.
– Sim, mas... Ele já não era um protetor de Selfor? A magia já não estava com ele? – Dafne tentava formular tudo em sua mente, mas as coisas não se encaixavam de forma certa.
– Não. – Kaled agora estava aparentava estar feliz com o que ia falar – Um protetor se vai com a guerra e junto com eles a magia.
– E como isso volta em outra guerra? O que quer dizer com “Um protetor se vai”? – Dafne pode notar um tom de histeria em sua própria voz.
Kaled se deitou ao lado do lago ainda olhando pra ela. Dafne sentia a preocupação por aquele monstro aumentar em seu peito, mas algo na história não batia com suas preocupações. E também algo na imagem dele deitado na beira do lago estava errado.
Dafne percebeu de súbito que muita coisa estava errada ali. Por que ela não estava com frio? Por que o laginho não estava congelando? Era impressão dela ou Kaled estava diminuindo?
– Kaled... o frio... – Dafne tentava passar suas perguntas mentas para a fala, mas não conseguiu, porém o que falou foi o bastante pra Kaled entender.
– Eu disse. Aqui em Dasdev muita coisa estranha acontece. Boa parte da antiga magia de Selfor se encontra aqui. – Kaled voltou a ter o tom majestoso em sua voz – Esse laguinho, por exemplo, pode mostrar o que realmente somos... – Kaled inclinou a cabeça sobre o lago – e se ficarmos aqui por muito tempo, viramos o que realmente somos.
Dafne sentiu o coração disparar no peito quando certas suspeitas tomaram sua mente. Era muita coisa pra ela entende, ainda tinha muitas duvidas que precisavam ser respondidas.
Kaled se levantou.
– Vamos, She já deve ter controlado aquela euforia e eu tenho que partir. – Kaled falou enquanto se afastava do lago. Quando ele estava á uns cinco metros do lago seu tamanho foi aumentando e na grama aos seus pés se formava uma fina camada de gelo.
– Mas eu ainda tenho duvidas – Dafne criticou.
– She as responderá depois – Kaled se deitou – Agora vamos, não posso ficar mais tempo aqui.
– Mas o que você é Kaled? Quem são as outras três pessoas que o ultimo protetor quis proteger? E onde ele está? – Dafne deixava as perguntas fluírem pela sua boca assim que as pensava, enquanto montava Kaled.
– Seus irmãos são os outros protegidos – Kaled respondeu só a uma de suas perguntas e no segundo seguinte corria tão rápido que nada mais poderia ser falado sem que as palavras fossem caladas com o vento.
Enquanto Kaled corria por Dasdev, Dafne deixava seus pensamentos correrem por sua mente. Ela havia aprendido muita coisa naquele dia, mas todas essas coisas abriam duvidas maiores em sua mente. Sabia que iria voltar para a casa de She, também sabia que poderia aprender muito mais com ele do que Kaled permitiria estando por perto.
Assim que desceu dos ombros de Kaled, ele saiu correndo pelo mesmo lado de onde tinham vindo. Dafne não pode acreditar que ele se fora tão rápido, mas quando viu seu enorme corpo branco desaparecer na floresta, soube que não o veria por muito tempo.
Não sabia dizer por quanto tempo ficou parada onde Kaled a havia deixado, só sabia que o sol já tinha sumido há algum tempo. O aroma conhecido da sopa de She tinha invadido o quintal e alguns minutos depois Dafne pode ouvir a cadeira de balanço ranger atrás dela, mesmo assim ficou olhando pras sombras das árvores de cercavam a casa. Olhando o lugar por onde seu único ponto seguro daquela loucura havia sumido, engolido pelo terror que era Dasdev.
Todos os contos que ouvira quando criança a impediram de sair correndo atrás dele, e esses mesmo contos incentivaram sua mente a funcionar e a lembrá-la que nunca o alcançaria correndo com suas próprias pernas.
Também não sentiu lágrimas rolarem por seu rosto, mas sabia que isso era só uma questão de tempo, talvez quando realmente entendesse que ele se fora elas brotariam de seus olhos.
A cadeira de balanço atrás de si mantinha o rangido constante e irritante, muitas vezes a desconcentrando dos seus pensamentos e colocando-a de volta na realidade estranha em que se encontrava sua vida.
Dafne se chocou a notar que sua vida nunca mais seria a mesma. Nunca mais voltaria a ser maltratada pelos irmãos, não ouviria as ordens de sua mãe, não iria de vez em quando a cidade ouvir contos e lendas, em suma, sua vida não seria mais normal. Mas ela continuaria a viver isolada de tudo, ainda mais do que antes. Viveria com She o resto de sua vida apenas esperando Kaled voltar e dizer que a guerra tinha acabado? “Um protetor se vai com a guerra...” As palavras de Kaled foram um eco em sua mente, um arrepio passou por seu corpo ao pensar na possibilidade de ele não voltar. Lembrou da imagem na porta do corredor da cozinha. Um protetor assim como Kaled entre dois exércitos.
Quando o desespero tomava conta de sua mente Dafne percebeu que o rangido tinha parado. Desde quando não ouvia mais aquele som irritante? Pela primeira vez desde que Kaled se fora, Dafne se forçou a olhar pra trás.
She estava a menos de um metro dela, olhando pra ela como se avaliando alguma coisa e Dafne via constantemente em seus olhos desapontamento. Ela se irritou. Já não bastava tudo pelo que estava passando? Já não bastava estar longe de todos que gostava? Já não bastava Kaled a ter deixado? Agora teria que aturar aquele velho carrancudo?
– Não pensa em ficar aqui parada, pensa? – She perguntou conseguindo deixá-la ainda mais irritada.
– E se eu quiser ficar aqui? – Dafne retrucou brava – Vai tentar me impedir?
– Claro que não, minha obrigação é te manter aqui mesmo. – Essa parte da conversa confundiu a cabeça de Dafne. – Mas eu lamento, pois não queria ficar. – She falava olhando algo além dela, provavelmente o ponto onde Kaled havia partido.
– O que quer dizer? – Dafne perguntou confusa.
She olhou para ela e havia confusão em seus olhos também, confusão que foi sumindo enquanto um sorriso se formava nos lábios dele.
– Ah claro, você deve estar pensando que eu me importo que crie raiz em meu quintal, certo? – She parecia se divertir com a situação, Dafne só se confundia mais a cada palavra. – Olha menina, não sei você, mas essa guerra me chama. É hora de provar que eu não vim parar aqui por medo de algo, mas sim pra aguardar algo. Passar pelo que eu passei em Dasdev me deu conhecimentos que podem ser muito úteis em guerra...
– Está pensando em me levar pra guerra? – Dafne não notou emoção alguma em sua voz, e também não sabia o que sentir.
– Não é bem isso que eu quero. – She voltou a olhar além dela, seu rosto era sonhador, e isso passou para Dafne, que pela primeira vez olhava aquele rosto velho com alguma esperança. – Pensei em muitas coisas que estão estranhas nessa guerra, e acabei chegando a algumas conclusões. – Ele voltou a sorrir para ela – Mas creio só as revelar pra ti amanhã. Antes acho melhor ir comer algo e dormir bem. Eu vou te acordar mais cedo do que hoje.
– Tudo em. –Dafne concordou.
– Boa menina, - She sorriu – Pela manhã eu lhe conto algumas coisas que penso sobre tudo isso, e vou lhe pedir sua opinião.
Dafne sentiu esperança pela primeira vez em sua vida. Sentiu que as coisas estavam para mudar e Dafne estava gostando da mudança. Sorriu para She e entrou em casa, não se demorou a comer, lembrou de lavar a louça e foi para seu quarto.
A janela ainda estava aberta sobre a cama e Dafne se lembrou de que quando acordou Kaled estava lá. Como será que ela havia aberto a janela? Sentiu a depressão chegar de mansinho ao seu peito. Fechou a janela e se deitou. Procurou só pensar no que She iria lhe contar no dia seguinte, pensar que poderia ver Kaled mais cedo do que ele mesmo esperava. Será que ele ficaria bravo em vê-la longe de onde ele queria que ela estivesse?
Mas e se os planos de She não levassem a Kaled? O que será que ele estava pensando em fazer? O que ela mesma queria fazer? 
Era estranho ficar tão confusa a cerca de tudo que se passava em sua vida. Tudo sempre fora tão claro e simples, fazer o que a mãe mandava e tentar fugir o máximo possível dos irmãos. Agora simplesmente não sabia o que o amanhã ira trazer pra ela, esses dois últimos dias foram os mais estranhos, mas também os mais emocionantes de sua vida.
Quem sabe aqueles não foram só os primeiros de muitos dias de emoção, mas até que ponto tanta emoção pode ser bom? Dafne já não tinha sofrido muito no dia anterior? E hoje também não tinha sofrido com a ida de Kaled? O que mais ela poderia perder? O que mais ela poderia descobrir que a ferisse?
Afundou a cabeça no travesseiro para afugentar esses pensamentos. Talvez, só talvez sua vida não devesse fazer sentido mesmo. Talvez ela devesse parar de pensar tanto no que estava por vir, e se jogar as cegas em um túnel escuro que era seu futuro, sem medo do amanhã, até porque o que mais ela tinha a perder?
O garoto loiro não estava olhando pra ela, estava chorando embolado em um canto da caverna. Dafne se espantou ao descobrir que se encontrava em uma caverna. Tentou olhar em volta, mas era tudo escuridão, o único ponto luminoso o lugar era o garoto e ela só sabia estar em uma caverna pelos resmungos dele.
– Caverna estúpida e fria. – o garoto choramingava – lugar idiota, quero ir pra casa... pra casa... pra casa... – Dafne queria poder ajudá-lo em alguma coisa, pelo menos consolá-lo, mas não conseguia se mexer ou falar, só podia ficar parada olhando o garoto chorar.
– Chama essa caverna de idiota criança? – Dafne estremeceu com a voz que ouviu a voz fez estremecer toda a caverna. Seu tom era de deboche, mas o poder que a exercia era surpreendente. Dafne ficou olhando preocupada para o garoto, mas esse não deu sinal de ter ouvido a voz, o que deixou Dafne ainda mais preocupada. – Ousa me ignorar criança? O que espera? Quer o papai aqui para te salvar? – a voz terminou as perguntas com uma gargalhada que faz Dafne tremer da cabeça aos pés.
– Vá para o inferno – o garoto respondeu sem erguer a cabeça. Dafne ficou surpresa com a reação dele, ela mesmo que pudesse não conseguiria falar.
– Então a criança sabe falar além de chorar? – a voz continuou debochada – Mas, por favor, continua chorando, tenho certeza que seu pai não gostaria de respostas tão malcriadas, mesmo comigo. – outra gargalhada.
– Vá para o inferno. – o garoto repetiu, dessa vez com uma voz vai grosseira do que chorosa. Dafne continuava sem poder fazer nada além de observar, totalmente impotente. – E não ouse a falar do meu pai seu infeliz.
 – Eu? Infeliz? – seja o que for que estava falando ria bastante – Tenho certeza de ser a pessoa mais feliz de Selfor agora! – a voz parecia se divertir demais com a situação – Vamos lá pequeno Donavan, admita, seu pai está em minhas mãos. – mais uma gargalhada, Dafne estava petrificada.
O garoto se ergueu com raiva evidente no rosto, mas assim como Dafne, ele não pareceu saber de onde vinha a voz o que não o impediu do começar a socar as paredes da caverna.
A voz continuou com horríveis gargalhadas, enquanto o garoto socava as paredes até suas mãos sangrarem... Antes que a voz parasse de rir ou o garoto de socar, Dafne acordou.
Dafne acordou um minuto antes de She entrar em seu quarto a fim de acordá-la. Ele pareceu surpreso em vê-la acordada, mas contente. Para Dafne era estranho ver She sorrindo tanto pra ela, mas não desagradável.
Dafne comeu de novo da sopa, que pelo jeito era o único alimento que She sabia fazer, enquanto She ficava sentado olhando para janela sem nada dizer. Comendo em silencio, Dafne meditou sobre o sonho que teve. Era possível que aquele fosse mesmo o príncipe Donavan? Será que o dono daquela voz era Grembar? Dafne se encolheu.
– Algum problema com minha sopa? – She havia parado de olhar pela janela e a observava, ainda sorrindo.
– Não, - Dafne também sorria agora – nada de errado com a sopa, mas... – ela tentava fazer de tudo para esquecer seu sonho – só sabe fazer isso?
She riu alto com a pergunta. Deixando Dafne mais tranqüila e animando o ambiente. Quando ela terminou de comer o sonho já era um pensamento distante. She retirou o prato dela e ele mesmo lavou, parecia uma criança preste a ganhar o presente muito desejado e Dafne se pegou imaginando sobre o que ele tinha em mente.
Quando terminou de lavar a louça She se sentou ao lado dela e ficou em silencio encarando a mesa lisa. Sem se contentar com o silencio Dafne resolveu tomar a palavra.
– Não quero ficar parada aqui, She – Dafne sussurrava, mas She continuava a olhar a mesa. – Quero ajudar Kaled, não o quero em uma guerra sozinho.
– E o que você imagina poder fazer? – She estava sério de novo – O que uma menininha pode fazer em uma guerra?
Dafne não teve respostas para essas perguntas, mas algo no jeito que She falava dava a estender que ele tinha tais respostas, então ela permaneceu calada até ele resolver revelá-las.
– Dafne, escute, – She agora estava virado para ela – Kaled partiu para ver como andam as coisas com Angus. – Dafne não podia deixar de achar estranho o modo como ele falava do rei. – Como ele é um protetor pensa mais em estar no reino do que com os inimigos...
– Quer ir para os inimigos? – Dafne perguntou com os olhos arregalados.
– Não exatamente. – She estava, evidentemente, ansioso.  Kaled não veio junto com a guerra, ele apenas anuncia a chegada dela, e tem algo muito estranho no fato de Grembar não se pronunciar.
– O que achas que é? – Dafne continuava com o sussurro, como se mais alguém pudesse os ouvir – O que Kaled pensa disso?
– Ele diz que o silencio do Grembar é sinal de que ele está se mexendo para atacar. Por isso Kaled quer ficar perto do reino. – os olhos de She cintilavam – Não creio que ele esteja certo, tem algo muito estranho nisso tudo e eu preciso descobrir, Dafne.
She olhava para ela como se fosse sua ultima esperança. A cozinha pareceu encolher em volta de Dafne.
– Quero investigar isso, menina. – She se aproximou dela – Dasdev esconde muitos segredos, segredos que poucas pessoas além dos protetores conhecem, eu sou um que conhece...
– O que quer dizer com isso? – Dafne não pode deixar de imaginar a caverna de seus sonhos... a escuridão.
– Grembar sempre se ocultou nas sombras de Dasdev. Em lugares tão sombrios e escuros que os próprios protetores evitam. Quero investigar lá.
– Kaled ficaria furioso... – foi tudo que Dafne conseguiu sussurrar, coisas passavam por sua mente, os contos, seus sonhos, Donavan... – Vai querer resgatar o príncipe?
She mudou totalmente, seu rosto, seus olhos, tudo mudou, mas Dafne não saberia definir o que queria dizer essa nova expressão. Porém a mudança não durou muito, ele voltou a ter a face sonhadora.
– Termos o príncipe de volta é um motivo a menos para se declarar guerra. – She respondeu. – Uma vantagem a menos para Grembar.
– Está pensando em entrar em Dasdev? Encontrar Grembar e tentar sair de lá com o príncipe? – Dafne perguntou isso deixando claro o quanto achava absurdo. – Só mais uma dúvida, pretende sobreviver a isso? – Dafne pergintou sarcástica. – aprendeu muito com seus irmãos a agir assim.
Ele não respondeu a suas perguntas. Ficaram em silencio por mais tempo do que Dafne conseguia definir. Uma brisa fria entrava pela janela, no ar, um cheiro que chuva. Dafne se levantou e foi até a janela.
Nuvens densas estavam encima da casa, indo em direção a Dasdev. Não demorou muito e a chuva começou. No inicio a chuva estava fina, até mesmo agradável. Dafne continuava a pensar nas loucuras de She, ele podia ser mais velho, mas não parecia ter juízo. Encarou a floresta que cercava a casa, floresta que a separava de tudo que conhecia.
Em apenas três dias sua vida tinha mudado totalmente perante seus olhos. Não havia mais sua mãe para lhe dar ordens ou seus irmãos para lhe botar em problemas, e agora, não havia nem Kaled para lhe dar força. Dafne sorriu consigo mesma, lembrou do dia em que correu pela estrada chorando de medo por Chad, lembrou que ver a trilha que levava ao rio congelada, os olhos de Kaled e o medo que sentiu dele no primeiro instante. Agora tudo o que queria era ele ali de novo.
Kaled era monstruoso sim, mas era um monstro que queria o bem dela. Dafne não entendia muito bem tudo o que estava acontecendo, mas sabia que de alguma forma Kaled devia aparentar ser monstruoso, principalmente em uma guerra. Sim, ele deveria ser temido. Mais uma vez a imagem da porta apareceu em sua mente, aquele protetor, ele perecia ser mais monstruoso que Kaled, maior e mais forte também.
– De que guerra é o protetor que está pintado naquela porta, She? – ela resolveu perguntar enquanto observava a chuça ficar mais forte.
– Ela participou de cinco guerras atrás, – She falou no segundo depois que ela perguntou. – Foi a última guerra conta o povo do continente. O povo de onde Grembar veio.
– Você disse, ela? – Dafne perguntou se virando para ele. She parecia estar sofrendo, mas também parecia querer falar.
– Sim Mila foi a Protetora de Selfor na última guerra contra o povo do continente. Ela era poderosa, – os olhos de She brilhavam como se visse um sonho perante seus olhos – muito mais poderosa que esse bebê que é Kaled. – She sorria. Dafne se sentiu ofendida, mas permaneceu calada, ouvindo. – Mila defendeu todos bravamente e nos levou a vitória. – estranhamente Dafne percebeu que o orgulho que ela percebia em She agora qualquer um poderia ver nela ao falar de Kaled.
– Ela escolheu proteger você, She? – Dafne o incentivou a continuar.
She olhou confuso para ela, mas com o tempo pareceu notar alguma coisa e respondeu.
– Sim, digamos que ela escolheu me proteger. Humpft. – Dafne se assustou ao notar que ele não pretendia falar mais nada.
– O que aconteceu com ela? – Dafne tentou incentivá-lo de novo.
Os olhos de She passaram de dor a raiva, raiva contra Dafne. Seus olhos se fixaram ela e ela entendeu que corria perigo em ficar ali. Parada na frente da janela sendo encarada daquele jeito por She era assustador. Mais do que nunca desejou ter Kaled por perto. Queria o olhar dele sobre She para impedi-lo de fazer qualquer coisa contra ela.
Porém Kaled não estava com ela, Dafne teria que enfrentar She sozinha, Kaled a havia abandonado, deixando-a com alguém que sentia raiva dela. Por que She sentia raiva dela? Dafne pensou na ultima pergunta que fez “O que aconteceu com ela?”, Dafne sabia não ter culpa em qualquer coisa que tivesse acontecido com Mila, então... Por quê?
– Mila foi morta. – o olhar dele era macabro – Ela amava o que era. Gostava de falar do que aprendeu, contou a mim muitas coisas sobre a essência do que era, mas não contou só a mim... Mila tinha um grande amigo, amigo que ela contou quase tanto quanto contou a mim. Não tudo, mas o que contou foi o suficiente.
She encarava Dafne com desejo de morte, Dafne sabia disso, sentiu o medo tomar conta dela de novo e mais um vez desejou ardentemente que Kaled não tivesse partido. She ficou calado remoendo a raiva dentro dele, mas o que Dafne via não era só raiva, ainda havia dor ali e foi nessa dor que Dafne tomou confiança de que ainda poderia se sair bem na situação, então se arriscou a satisfazer sua curiosidade.
– Kaled me falou que tem muitas vantagens sedutoras em ser um protetor e tu me falaste que os protetores falam pouco de si. – Dafne arriscou o comentário para ver se ele falava mais alguma coisa.
– Realmente tem coisas tentadoras em ser um protetor... Quando você está numa situação em que essas vantagens são sedutoras. – para Dafne aquilo não fez muito sentido, mas foi bom, pois She parece mais sério e focado no assunto em vez de no sentimento. – Mila não chegou a ser protetora por sentir essa tentação. Ela explicou a mim e a esse amigo como virou protetora, contudo ela também nos contou como alguém poderia se tornar protetor pela força... – She olhou para ela novamente, essa vez além de raiva tinha nojo em seu olhar.
– Como? – Ela perguntou, mas perguntou temendo por Kaled.
– Matando. – o nojo era mais intenso em toda a face dele. O nojo era bom, agora não parecia que ele iria matá-la. – O melhor amigo de Mila a matou. Matou pela tentação das vantagens. Matou para satisfazer uma vontade dele. – Dafne ficou assustada ao ver que She estava chorando, mas queria saber mais, saber para tentar proteger Kaled.
– Só matando? – Dafne tremia da cabeça aos pés, mas dessa vez não era de frio. She olhou para ela entre as lágrimas, e havia indecisão no seu olhar, porém os sentimentos transbordavam dele e ele queria falar.
– Só matando? – Ele repetiu a pergunta dela com sarcasmo. – Me diga, menina. Qual é a principal característica de um protetor?
– Eles aparecem antes de uma guerra... – Dafne sussurrou em resposta, temendo errar.
– Correto! Mas um protetor protege Selfor – She falou dando ênfase na palavra “protege” – Vai contra a natureza de um protetor deixar Selfor em perigo.
Dafne não estava conseguindo captar as coisas muito bem, e soube que isso teria que mudar. Teria que conseguir entender cada detalhe da história dos protetores e de Selfor, para poder ajudar em alguma coisa. E soube também que a única pessoa que poderia ensiná-la era She. Olhou para o homem velho, mas forte e pelo jeito incrivelmente sábio. She era sem duvida uma personalidade forte, mas que guardava grandes sentimentos desagradáveis dentro de si, sentimentos esses que pareciam se voltar com tudo contra Dafne.
Ouvia chuva que caia furiosa do lado de fora da casa. Os sentimentos inundavam a cozinha, tantos os dela quanto os dele, deixando, para Dafne, um certo constrangimento no ar. She olhava pra ela como se avaliando algo, algo que Dafne não queria descobrir tão cedo. Pensou em como toda aquela conversa havia começado, e decidiu que havia que tomar uma decisão.
– Kaled vai odiar quando descobrir isso, mas... – Ela começou e notou que conseguiu focalizar a atenção de She nela. – Não quero ficar aqui parada. Quero aprender para poder ajudar em alguma coisa. – ficou nervosa antes de acrescentar a última parte, todavia soube ser necessária – Quero aprender o máximo possível para poder ajudar Kaled e retribuir a proteção que ele me dá.
O que ela falou sobre Kaled pareceu funcionar, a fisionomia de She mudou e mudou para a mesma sonhadora do inicio da conversa. Entusiasmada com a mudança dele Dafne permitiu-se relaxar e voltar-se novamente para a chuva. Chuva...
– She, – virou-se para ele de novo – como vamos ficar na floresta? – ela apontou para a floreta, mas querendo que ele notasse a chuva.
– Mila me contou muitas coisas sobre Dasdev e sobre muitos abrigos também. – She sorriu para Dafne e ela retribuiu o sorriso aliviada.
– Quando partimos? – Dafne perguntou.
– Vou preparar algumas coisas e partimos ainda hoje. – ele respondeu já se
levantando e saindo da cozinha.
Dafne ainda ficou ali parada encarando Dasdev. Aquela floresta parecia engolir tudo da velha vida dela, pareceu até natural Dafne mudar dentro dela. Algo naquele estranho ritual de sua vida parecia sagrado. Dasdev que antes era ponto de terror, agora seria seu lar.
Saiu da cozinha e parou diante da porta com a pintura de Mila. A protetora da imagem não parecia nem um pouco feminina. Dafne acariciou a figura, novamente lembrando-se de Kaled. Pensou no medo que sentia de algo acontecer a ele, pensou na fúria que ele ficaria quando se descobri que ela não estava onde ele a deixou. Pensou no sentimento que se acumulava dentro dela, em todo carinho que sentia pelo monstro que a arrancara de sua velha vida, e que a estava obrigando a descobrir coisas que a confundiam e assustavam.
She tinha um grande carinho por essa Mila, e Dafne pode sentir que o mesmo carinho crescia dentro dela para com Kaled, mas outras coisas também tomavam sua mente, como o antigo protetor.
Estava com uma intuição terrível sobre ele, mas não queria pensar nisso, tentou esquecer a raiva que She sentiu dela, e também esquecer o fato de os protegidos dele serem sua mãe e irmãos. Procurou focar seus pensamentos no que estava por vir, em como passaria por essa vida, pensou também em Donavan, lembrando das mãos dele sangrando enquanto socava as paredes da caverna, socando com raiva sem poder atingir o provocador.
Dafne afogou dentro de si todos os sentimentos possíveis, e tentou lembrar de alguns contos sobre Dasdev, depois de recordar do segundo já havia notado que péssima ideia fora aquela.
Dirigiu-se ao seu quarto e mais uma vez se deitou na cama macia. Chorou baixinho enquanto pensava em Kaled. Onde ele estaria? Ficou imaginando a fúria dele quando voltasse e não a encontrasse aqui. Quanto tempo ela e She ficariam em Dasdev? O que iriam fazer?
Dafne mais uma vez pensou em parar com as perguntas e se jogar sem medo no caminho escuro que estava se tornando seu futuro, mas deveria parar de pensar nas perguntas sobre seu passado? Passado que pelo jeito sempre fora escuro.
Talvez as respostas viessem de She, talvez esse tempo que passaria em Dasdev fosse esclarecer muita coisa, talvez toda essa loucura teria um final decente e normal. Talvez algum dia parasse de sofrer. Talvez.
A chuva já havia parado há muito tempo quando She entrou em seu quarto e avisou que iam partir. Não devia ser nem meio dia, mas como o céu ainda estava coberto de nuvens, Dafne não saberia dizer.
She carregava um saco nas costas e segurava um menor na mão.
– Coisas que vamos precisar no inicio da viagem. – Ele sorriu para ela enquanto lhe entregava o saco menor.
– Quanto tempo ficaremos em Dasdev? – Dafne perguntou pegando o saco.
– Bastante tempo, Dafne. – She seguiu para a varanda com Dafne no seu encalço.
Dafne parou na soleira da porta enquanto via She se dirigir para a entrada da floresta. “Bastante tempo, Dafne”, foram as palavras dele.