quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

DUVIDAS E MEIAS RESPOSTAS


Quando terminou de comer, She recolheu o prato e, novamente, mandou-a dormir. Não trocaram mais palavras e Dafne seguiu obediente até o quarto.
Chegando, fechou a porta e foi para cama, onde aproveitou pra fechar a janela. Deitou. A cama era incrivelmente macia, não tanto quanto os pelos de Kaled, mas era quente. Embrenhou-se entre as cobertas e ficou a lembrar das coisas do dia, antes do que imaginava, dormiu.
Um menino a olhava. Devia ter uns dois anos a mais que ela. Ele tinha o cabelo claro, um loiro quase branco, seus olhos eram de um azul penetrante, o menino poderia ser extremamente belo se não fosse pela cara de dor.
Seu rosto lindo estava contorcido em dor, os olhos azuis, tão belos, estavam arregalados em desespero. Sua boca falava algo que ela não podia ouvir. Ele estava desesperado e com muito medo. De repente, ele começou a correr até ela, corria de modo frenético, e nunca chegava.
Dafne notou que quanto mais ele corria, mas a distancia entre eles aumentava. O medo e o desespero passaram a tomar conta dela também. Tinha que saber o causava tanta dor ao menino, tinha que ajudá-lo. Correu. Correu até ele desesperada também, sabia que sua face agora também era de dor.
Acordou.
Estava suando muito e por um momento não reconheceu o quarto em que estava. Demorou um pouco, mas logo as lembranças do dia voltaram. Reparou que já estava escuro. Quanto tempo ficou dormindo? As lembranças do sonho tomaram sua mente. Lagrimas rolaram silenciosas por sua face, junto com o suor.
Permitiu-se chorar mais um pouco e logo caiu no sono de novo, mas agora não teve sonhos.
Acordou com o sol irritando seus olhos. O quarto estava bem iluminado e a janela bem aberta acima de sua cabeça. Mas mesmo com o sol brilhando o frio era avassalador. Enrolou-se mais nas cobertas e chamou por Kaled. Mal sussurrou o nome e a cabeça enorme dele ocupou toda a janela.
Sorriu consigo mesma e se levantou na cama para vê-lo melhor. Teve que ficar em pé para conseguir ver os olhos dele, olhos vermelhos sangue. Olhos que de inicio a assustaram, mas agora estava muito feliz por vê-los. Esticou a mão para tocar o pelo branco entre os olhos dele, mas ele se afastou.
– She acorda cedo sempre, no entanto consegui convencê-lo a te deixar dormir por mais tempo. – Kaled comentou com voz calma – mas não vai ser sempre assim. Tem que se acostumar a acordar tão cedo quanto ele. Ele que vai cuidar de ti e responder tuas perguntas. Vai explicar o porquê tu estás aqui e vai treiná-la.
– Treinar-me? – Dafne perguntou confusa.
Kaled sorriu. Os dentes tão brancos quanto seu pelo e por um breve momento ele abriu um pouco a boca, mostrando por dentro pura escuridão.
– Sim, mas isso também cabe a ele explicar. – continuou ele – eu vim por outro motivo... – seus grandes olhos vermelhos se focaram nela, e ela teve certeza de ver dor neles. – Vou ter que partir mais cedo do que imaginei. Só vou ficar contigo por hoje, menina.
– Não! Tinha dito que ficaria comigo por uns dias! Não me deixe sozinha com ele, por favor... – Dafne não gostou nem um pouco da idéia. Tudo já era estranho demais, sem ele ficaria ainda mais difícil. Kaled já era seu porto seguro no meio de toda loucura.
Sentiu um aroma muito bom invadir o quarto. E o estomago dela começou a resmungar. Esticou a mão mais uma vez para tocar Kaled e dessa vez ele não se afastou. Dafne deixou sua mãe afundar naquele pelo macio e frio.
Kaled era monstruoso. Ser todo branco e só os olhos vermelhos era assustador, mas mesmo assim, Dafne não queria ficar longe dele. Suportaria o frio! Qualquer coisa, desde que ficasse com ele. Os olhos de Kaled se fecharam ao seu toque, ele gostava. Permitiu-se fazer um carinho na criatura, agora só tinha uma leve noção de onde deveriam estar seus olhos. Deixou a mão vagar em um movimento de cima pra baixo. Tocou o focinho dele, era molhado, e tão branco como o resto de seu corpo. Acariciou ali de leve. Ficou assim por uns segundos, até que ele se afastou sacudindo a cabeça.
– Vá comer alguma coisa. Depois vamos discutir minha partida. – ele falou enquanto se afastava da janela. – She está te esperando. Vá de uma vez. – dizendo isto saltou para fora do campo de visão dela.
Dafne suspirou impotente, mesmo que quisesse que Kaled ficasse, o que poderia fazer? Ele era estranho pra ela, e uma criatura poderosa, sem duvida, ela nada poderia fazer pra mudar o caminho que ele quiser seguir.
Saiu do quarto em silencio, não queria chorar na frente de She e também não queria mais chorar de modo algum.
Parou no meio do corredor que levava á cozinha, ele era tão simples quanto a casa. No fim tinha a porta que levava a cozinha, mas ao longo de sua extensão tinha mais três portas, duas ao lado direito de Dafne e uma do lado esquerdo. As duas do lado direito eram iguais as do seu quarto, mas a do lado esquerdo era totalmente diferente.
Enquanto as outras eram lisas e simples, essa era toda ordenada com figuras fantásticas. As figuras representavam homens, aparentemente em guerra contra criaturas estranhas. Só havia uma criatura que aparentava estar do lado dos homens, e essa criatura lembrava muito Kaled.
Em toda a extensão da porta a guerra estava representada. Do lado direito as criaturas. Do lado esquerdo os soldados do reino e na frente dos soldados estava Kaled. Imponente e majestoso! Ficava entre os dois exércitos como se só ele fosse o bastante para impedir o exercito inimigo. As imagens tinham a cor da porta, um marrom gasto e sujo, mas isso não as estragava em nada.
Mas uma coisa era obvia, a porta era antiga. Quantos anos tinha Kaled? Ele realmente esteve em uma guerra? Dafne estremeceu ao imaginar Kaled entre esses dois exércitos, mesmo sabendo que ele era forte... Examinou o exercito que Kaled encarava. Criaturas horrendas tão monstruosas e impotentes quanto o próprio Kaled, mas com certeza eram mais feias e um pouco menores, Kaled conseguiria lutar com alguns facilmente, mas com todos eles...
Dafne tocou a imagem de Kaled, acariciando-a de leve e prestou atenção nos detalhes da imagem. Não era Kaled. A imagem da porta era, vendo bem de perto, mais velha que Kaled. A criatura da imagem, embora muito parecida, não era Kaled.
– Protetores de Selfor... – Dafne deu um salto de susto e se virou para ver quem falara. Era She. – aparecem em tempos de guerra, ou alguns anos antes. Os protetores nasceram com o reino. E mudam junto com ele. Com uma nova guerra um novo protetor aparece.
– Kaled... – Dafne estava mais confusa do que nunca. – Uma guerra? – ficou encarando She até ele resolver responder.
– Sim, Kaled anuncia uma nova guerra. Ele é o novo protetor de Selfor. – She explicou, sua face era muito séria. – Os protetores nunca revelam muito sobre si, mas Kaled é incrivelmente jovem, deve ser o mais jovem desde o acordo de Daus.
– Quem é Daus? – Dafne interrompeu.
– Daus foi o sétimo rei de Selfor, ele que fechou o acordo com os Protetores...
– Mas eles sempre foram chamados de “Protetores”? – Dafne interrompeu de novo. – isso pareceu irritar She.
– Vá comer, menina. Respondo tuas perguntas mais tarde. – She reponde ríspido seguindo para fora.
– Mas eu quero saber. Quero saber porquê estou aqui. Se Kaled é tão novo... O que vai ser dele em uma guerra, se...?
– Acho que deverias ter mais confiança nas capacidades de Kaled... Mais até do que ele mesmo tem... – She a interrompe. – Agora vá comer e nos encontre lá fora depois. – ordenou ele ao se afastar. – e não se esqueça, tem que lavar a louça. – com um ultimo sorriso pra ela, ele saiu.
Quando She saiu de vista, Dafne olhou mais uma vez as imagens da porta. O protetor da imagem era realmente mais velho que Kaled, devia ser mais forte também. Não conseguia parar de pensar em como Kaled ficaria em uma guerra, entre os exércitos, como naquela figura...
Sacudiu a cabeça para afastar a imagem. Foi para cozinha onde encontrou um prato sobre a mesa. Era a mesma sopa da noite anterior. Comeu o mais rápido que pode, lavou a louça e correu para fora.
She estava sentado em uma cadeira de balanço na varanda. O movimento suave da cadeira misturado com o pequeno rangido que ela causava quando se inclinava para frente dava um clima estranho no ar, ou talvez fosse só a ansiedade de Dafne que a fizesse pensar assim.
Parada na soleira da porta, Dafne ficou observando She. Ele permanecia de olhos fechados se deixando levar pelo movimento da cadeira. As rugas que se formavam na testa e nos olhos dele lhe davam uma aparência de fraqueza. Fraqueza essa que sumiu assim que ele abriu os olhos.
Seus olhos castanhos escuros se fixaram nela. Neles ela pode ver raiva, raiva por algo que ela não entendia. Dafne teve que desviar os olhos deles e encontrou os de Kaled.
A criatura branca estava sentada na grama á uns vinte metros dela. A distancia não diminuía em nada a intensidade do olhar dele. Mas mesmo intenso o olhar era indecifrável, Dafne não saberia dizer o que se passava na mente dele naquele momento.
Kaled desviou os olhos dela quando falou:
– Uma guerra está se formando em Selfor. O rei sofreu uma grande perde e já aponta o culpado. Não que ele não esteja certo...  – ele havia desviado os olhos dela, mas ela sabia que se os visse encontraria raiva nele também. – Angus é o atual rei de Selfor, ele tem três filhos – a dor na voz de Kaled era evidente. Dafne não teve coragem de interromper. Reiden é o mais novo, tem apenas três anos. Anne é a do meio, tem sete anos... – Kaled parou de falar por um tempo, depois continuou – Donavan é o primogênito. Estava com onze anos quando desapareceu.
– Desapareceu? – Dafne conseguiu falar olhando fixamente para Kaled.
– Sim – Dafne se virou para She, que tomou a palavra. – Donavan desapareceu e sobre formas muito estranhas, posso te afirmar. – She estava novamente de olhos fechados. Suas palavras eram pouco mais que um sussurro, e Dafne teve dificuldades de captar tudo. – Faz quase seis meses que Donavan sumiu, tempo suficiente para Angus clamar por guerra.
– Contra quem? – o estomago de Dafne borbulhava de ansiedade, algo naquela história deveria ter a ver com ela, e era esse ponto que ela queria chegar.
– Grembar é o principal inimigo de Selfor – a voz de She se elevou – mas o porquê de toda a inimizade você vai saber depois. O caso é que Angus tem certeza de ser Grembar quem sequestrou Donavan.
– E como ele conseguiu isso? – Dafne tinha milhares de perguntas em mente, mas não sabia quais fazer e como fazer a maioria.
– Ninguém sabe. Donavan foi dormir e não o acharam no dia seguinte...
– E como o rei culpou esse tal de Grembar? – Dafne interrompeu de novo.
– Grembar se acusou – She não pareceu se importar com as interrupções – dois dias depois do desaparecimento de Donavan, Grembar afirmou estar com ele. – todos ficaram em silencio por um tempo. Estava muito frio na varanda o que fez Dafne se virar para Kaled. Ele estava muito perto dessa vez, sentado sobre as patas traseiras na entrada da varanda. Ela tomou coragem e se sentou ao lado dele na grama. – Porem não fez ameaça alguma. O rei já perguntou o que Grembar quer, mas esse nada declara. Não deu mais sinal de vida.
– Seis meses e nada? – Dafne estava confusa. Sentiu Kaled estremecer ao seu lado.
– Não, não nada. – She continuou – Donavan desapareceu; dois dias depois Grembar afirma ser o responsável pelo sequestro; no quinto dia Kaled destrói minha horta... – She abriu os olhos para encarar Kaled. A raiva daquele olhar fez Dafne se aproximar ainda mais de Kaled, como se isso pudesse protegê-lo de alguma forma. – Ele ficou rondando minha casa por alguns dias, depois sumiu. E agora voltou contigo! – o tom de voz de She era de ironia. Ele realmente parecia estar muito brabo.
– E por que eu? – finalmente tinham chegado à parte que Dafne mais queria ouvir, mas assim que perguntou Kaled se afastou dela rudemente.
– Para ficar aqui comigo – respondeu She. – Kaled pareceu que descobriu muitas coisas desde o dia que foi embora e ele pareceu gostar do fato de te trazer pra cá.
– Mas por quê? – a mente de Dafne borbulhava tentando entender.
– Porque comigo é mais seguro. Digamos que eu sou uma pessoa que não gosta muito de confusão e...
– E eu achei que aqui era mais seguro pra ti – Kaled falava olhando pra She, mas se dirigindo a ela. – De inicio todos acharam que Grembar pediria algo em troca do garoto, mas ele não se pronunciou mais. – Kaled demonstrava gostar da história tanto quanto She. – Eu vaguei de norte a sul buscando saber o que estava acontecendo, buscando alguma informação do que Grembar planeja.
– Mas só me trouxe aqui por segurança? – Dafne podia estar confusa, mas notou que Kaled tentava mudar de assunto. Kaled se encolheu.
– Tem coisas entre os protetores, Dafne... Que não escolhemos... – Kaled agora olhava para ela. – coisas que não podemos mudar – seus grandes olhos vermelhos ardiam com uma emoção que ela não entendia. – uma dessas coisas me levou até você. Uma dessas coisas exige que eu a proteja.
– Tudo bem. – dói tudo que ela conseguiu falar. O sentimento nos olhos de Kaled queimava dentro dela também.
– She mora incrivelmente afastado de tudo. A primeira vez que vim pra cá não esperava encontrá-lo. Ele conseguiu montar moradia a noroeste de Selfor. – Kaled olhava pra ela vendo se tinha conseguido entender, mas para Dafne aquilo não quis dizer nada.
She soltou uma gargalhada, antes de comentar.
– Essa garota não sabe nada, não é? – ele ainda ria Dafne sentiu o rosto queimar. Kaled tinha se virado para She e um rosnado se formava em seu peito. – Diga-me, menina, – continuou She ignorando o rosnado de Kaled – tu já ouviste falar em Dasdev?
– Sim. – sim, Dafne já tinha ouvido falar em Dasdev. Em algumas das poucas vezes que sua mãe deixava ela e os irmãos irem para a cidade, ela ouvia história de Dasdev.
Pelo que se lembrava Dasdev era uma floresta que todos temiam, também lembrava que ficava bem longe de sua cidade.
– Claro que Dasdev tu deves conhecer. – She recomeçou a falar – esse povo adora contos de aventura ou que se tenha algo a temer. Dasdev nada mais é do que uma floresta bem densa. Guarda seus segredos, claro. Mas é apenas uma floreta.
– Dasdev é uma floresta incrivelmente densa. E guarda bem mais do que simples segredos, mas... – Kaled havia voltado a falar – mesmo com todos os perigos... Aqui é o lugar mais seguro pra ti, Dafne.
– Estamos perto de Dasdev? – Dafne sentiu a voz falhar.
– Está vendo essa mata que rodeia minha casa? – She perguntou entre uma gargalhada. – eu moro em Dasdev! Quer dizer, moro nos limites de Dasdev.
– Ele mora no lado oeste de Dasdev. Um lugar não conhecido pelo reino.
– Por puro medo! – She ainda debochava – esse povo é medrosa até seuas entranhas!
Um rugido escapou de Kaled. Dafne não estava gostando nada daquilo. Pela primeira vez desde que encontrou Kaled, ela desejou estar em casa. Desejou estar com a mãe e com os irmãos. Se lá não era seguro pra ela, o que garante que é seguro pra eles? Por que ela tinha que ter esse privilégio de estar segura e elas não?
– Quero ir pra casa – Dafne falou.
Kaled virou-se para ela em um salto.
– O que?
– Quero ir pra casa. – ela repetiu.
– Não, você não quer ir pra casa – havia desespero na voz de Kaled.
– Por que não, se lá não é seguro? – Dafne contrapôs.
– Justamente porque lá não é seguro que você vai ficar aqui! – A voz de Kaled era um trovão na pequena varanda.
– Mas se lá não é seguro pra mim também não deve ser seguro pra minha mãe e pros meus irmãos! – ela tentava se defender.
– Rá! Tenho certeza de que sua mãe está bem segura onde quer que esteja. – quem falou isso foi She, mas as palavras foram fortes o suficiente para chamar a atenção de Dafne e Kaled.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Dafne.
– Quero dizer...
– Nada! – Kaled foi mais rápido que ele. – Não quer dizer nada! – virou-se para Dafne – Tens razão. Talvez aqui não seja o lugar mais seguro pra ti.
– O que você quis dizer sobre minha mãe? – perguntou Dafne ignorando os urros de Kaled.
– Sua mãe é Íris, não? – She também ignorou Kaled, que urrou ainda mais alto.
– Sim, esse é o nome da minha mãe, mas o que quer dizer? O que sabe dela? – tudo podia ser novo, mas Dafne sabia que o perigo estava crescendo “Tudo começou há seis meses...”.
– Digamos que tua mãe tem seu nome marcado na história de Selfor. – havia um brilho perigoso nos olhos de She, como um berro para ela não acreditar em nada que ele falasse. Mas suas palavras eram estranhamente sedutoras para os ouvidos de Dafne. – Há mais segredos entre os protetores do que podemos entender... E alguns deles podem ser...
Dafne não ouviu mais nada, só sentiu um peso enorme a esmagando, não enxergou mais nada além dos pelos macios que grudavam em seu rosto, abafando qualquer som exterior. Sentiu o peito de Kaled tremer de forma violente, e agradeceu não poder ouvir aquele rugido.
Ficou por longos segundos sob o peso de Kaled sentindo seu corpo congelar com o frio.
Assim que Kaled saiu de cima dela. Dafne procurou com os olhos por She. Não havia sinal dele na varanda.
Kaled a observava sem nada falar. Dafne não sabia o que pensar. Kaled não poderia ter feito nada a She enquanto estivesse encima dela, ou...
– Ele foi para dentro. – Kaled atrapalhou seus pensamentos – Quero conversar contigo a sós.
– Vai me explicar o que ele quis dizer sobre minha mãe? – Dafne perguntou bufando.
– Vou tentar – prometei Kaled se deitando ao lado dela.
Dafne já conhecia aquela linguagem corporal e montou nas costas dele. Ele não perdeu tempo, assim que ela sentou, ele levantou e seguiu em direção a floresta “Dasdev...”, Dafne se prendeu com mais força contra o corpo dele.
– Não quero ir pra lá – Dafne comentou com voz falha.
– Quero te explicar algumas coisas, – Kaled retrucou – e dentro de Dasdev. Tem lugares mais apropriados que aqui.
– Mas...
– Não vou deixar nada acontecer contigo, Dafne. – Kaled não olhava pra ela, contudo ela sabia que ele não estava mentindo.
De inicio Kaled não correu, mas quanto mais entravam na mata, mais rápido ele andava, até que Dafne não conseguia definir a paisagem em que passavam. Estavam correndo. Os borrões que Dafne conseguia captar ajudavam a imaginação dela se precipitar a criar imagens terríveis que lembravam e muito os contos de terror contados em sua cidade.
Quando Kaled finalmente parou, Dafne contemplou uma pequena cascata d’água e um laguinho. O ambiente era muito lindo e desviou a atenção de Dafne quanto a todos os acontecimentos do dia.
Kaled deitou a alguns metros do lago e ela saltou para o chão. Dafne foi até a beira do lago e ficou observando os pequenos peixes vermelhos que nele viviam.
Um cardume desses peixes nadava bem à frente de Dafne. Suas escamas cintilavam por todo o lago dando uma luz especial no lugar. O reflexo de Kaled apareceu sobre a água e os peixes se dispersaram para longe.
– Esse lugar é lindo! – Dafne sussurrou observando agora o reflexo de Kaled.
– Sim, é realmente um lugar muito lindo. – a voz cavernosa dele não combinava em nada com o ambiente, mas ela tentou encaixá-la mentalmente ao lugar. – contudo até mesmo esse lago tem seus segredos. Dasdev não deve ser frequentada por quem não a conhece bem.
– E você a conhece bem, Kaled? – Dafne continuava a mirar o reflexo. O branco majestoso dele também cintilava no lugar. Ou o brilho estava sempre com ele?
– Conheço melhor do que qualquer um. – ele afirmou.
– Quantos anos tens, Kaled? – Dafne perguntou se virando para encará-lo.
Dafne se assustou ao perceber dor nos olhos dele. Dor, tristeza, confusão, Kaled estava sofrendo. Há quanto tempo será que ele sofre?
– Eu tenho muitos e poucos anos, Dafne. Mas não quero explicar nada sobre mim agora. – ele respondeu com calma e com a dor ainda forte em seus olhos.
– O que quer explicar? Algo sobre minha mãe, talvez? – Dafne perguntou esperançosa. Nunca viu nada de mais em sua mãe, mas nada mais era o mesmo desde que conheceu Kaled. Por que o velho mundo que conhecia também não deveria surpreendê-la? 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

She


        – Por que me trouxe com você? O que é você Kaled? – Dafne perguntou empolgada com o fato de ele estar tão amigável.
         – Logo vais descobrir as respostas para todas as tuas perguntas. Não pense nelas agora. – Ele respondeu com calma. – Você deve estar com fome, não? – Kaled mudou subitamente de assunto.
         – Um pouco, sim. – Respondeu Dafne ainda sorridente. Ela estava gostando da mudança repentina em sua vida. Sentia por sua mãe e seus irmãos, mas nunca se sentiu tão viva como com Kaled e não se arrependeu de sua escolha.
     – E tem que se secar ou vai ficar resfriada. – Quando falou isso os olhos de Kaled brilharam em divertimento, como se lembrasse de uma piada interna. – Tenho um amigo que mora aqui perto. – Parou um pouco em sua fala como se para escolher melhor as palavras. – Esse meu amigo é um tanto rígido com algumas regras e você terá de lidar com elas por algum tempo.
           – Algum tempo? – Dafne perguntou confusa. – Você vai ficar comigo por esse tempo?
        – No inicio sim, mas não ficarei muito. Tenho que resolver umas coisas e voltarei mais tarde pra te buscar. – Os olhos dele demonstravam, pela primeira vez naquela dia, um certo carinho. – Esse meu amigo vai cuidar de ti e responder, a maneira dele, suas perguntas. Só lhe peço que seja educada e faça o que lhe é mandando.
          – Não estou gostando disso. – Admitiu Dafne.
Kaled aproximou-se bem dela e baixando a cabeça até sua altura, tocou o focinho na testa de Dafne e falou com voz suave:
         – Não se preocupe, Dafne, eu cuidarei de ti e quando precisar é só chamar por mim que eu virei, certo?
      – Certo. – Dafne respondeu incerta, mas com calma, o frio e a maciez do pelo dele a deixavam tranquila.
        Ele se afastou um pouco e deitou na grama quase congelada. O que era um convite para ela subir.
        – Por que me fez descer pra subir de novo? – perguntou ele se irritando e imaginando ser jogada em um rio de novo.
        – Para ver se ia conseguir descer. Seria constrangedor demais perto desse me amigo.
       – E qual o nome desse seu amigo? – Perguntou Dafne ainda irritada, mais já subindo nele.
       – She.
       – She? Que tipo de nome é esse? She? – Perguntou Dafne realmente curiosa.
      – Pergunte à ele. – Kaled respondeu alegre – Só não garanto que ele vá responder. – Kaled se ergueu e começou a correr.  
      Dessa vez a corrida foi mais curta e os levou para uma casinha simples. Dafne nunca se preocupou com a localização dos lugares, e por isso só teve noção de que estava bem longe de casa.  A casinha que ela via não lembrava em nada a sua, que era caída aos pedaços e mal conservada, a que via agora, embora pequena e simples, era bem agradável e bem cuidada.
    Quando Kaled deitou, ela conseguiu descer facilmente, mas não saiu de perto dele. Seguiram em silencio até estar bem perto da casa. Sem precisar dizer uma palavra, assim que chegaram a dois metros, um homem alto e com os cabelos um tanto grisalhos, mas ainda era forte e devia estar perto dos cinqüenta anos.
       Seus cabelos eram escuros, pelo menos em alguns fios, pois o resto já estava cinza. E seu corpo era esbelto. Estava com uma cara realmente séria quando veio recebe-los. Olhou para Kaled primeiro e só depois notou Dafne. Sua cara não melhorou em nada ao vê-la. Olhou novamente para Kaled um tanto confuso e ainda sério.
        – She, meu amigo. – Começou Kaled. – Quanto tempo que não o vejo!
     – Um bom tempo, realmente. – Retrucou She, com cara de quem não estava gostando muito do reencontro.
      – Essa aqui é Dafne. – Continuou Kaled, ignorando a antipatia do amigo. – Gostaria que ficasse com ela por uns tempos. É uma boa menina, garanto.
       – E eu teria escolha? – She perguntou parecendo realmente curioso.
     – Claro que não. – Kaled pareceu bem contente com a resposta que deu. E She suspirou irritado.
      – Entre, menina. Vou ver aonde podes tomar um banho e ver se acho algo para vestires. Esse animal, por acaso, a tocou em algum rio? – S He perguntou para Dafne enquanto abria a porta para ela.
      – Sim. – Respondeu Dafne sem sair do lado de Kaled. Aquele homem conseguia assustá-la mais do que o próprio Kaled. 
      – Entre, Dafne. Vou esperar por ti aqui, certo? – Propôs Kaled, sentindo o medo dela. – She vai dar o que comer e o que vestir pra ti. Ele é meio rabugento, mas é um homem de bom coração.
   – Rá! Muito engraçado, Kaled! Quando começou com essas piadas tão fabulosas? – Retrucou She irritado, que ainda estava com a porta aberta.
     Dafne olhou mais uma vez pra Kaled, e este acentiu. Então ela foi em direção ao homem que lhe deu passagem para casa. 
     A casa de She era bem aconchegante e até bonita. Tudo estava arrumado e limpo. She fechou a porta e passou a sua frente, indo em direção a outro cômodo da casa, sumindo da vista de Dafne, que ficou parada em frente à porta fechada.
    She surgiu em sua vista novamente, agora tinha uns panos em sua mão e disse serem roupas pra ela.
     – Aquele é seu quarto. – Disse apontando para o cômodo de que sairá. - Nele tem uma bacia com água pronta para um banho. Tome seu banho e depois venha comer, vou preparar algo.
       Sem dizer mais nada, foi para outro lugar.
     Dafne foi com calma até o quarto. Ele era bem simples, mas mesmo assim era melhor do que o que tinha na casa de sua mãe. O quarto possuía como moveis uma cama, uma mesinha, uma cadeira e uma bacia enorme.
     A cama esta logo abaixo da janela e de frente para a porta. A mesinha com a cadeira estava bem ao lado da cama. E a bacia estava no quanto esquerdo à porta. Dafne fechou a porta e foi ver a bacia. Como dissera She, a bacia estava cheia de água e incrivelmente morna. Para Dafne isso foi um convite maravilhoso. Tirou suas roupas e botou sobre a cama junto com as que o She lhe havia entregue, e foi para água.
      Morna. Isso era realmente maravilhoso, depois de todo o tempo que passou com Kaled, algo morno era o paraíso. Pouco a pouco suas pernas perderam o roxo que estavam pelo frio. O morno da água também ajudou a clarear seus pensamentos que estavam confusos pelo medo de Kaled e a emoção que passou desde cedo.
      A bacia era grande o bastante para ela ficar com a cabeça submersa. E assim ficou por um tempo. Pensou bastante no que aconteceu, e não viu nenhuma lógica. Porem soube de imediato que não fazia questão de voltar pra casa.
      Era bem tosco sair por aí com um lobo gigante e gelado. Se a mãe soubesse com certeza ficaria brava, mas ela já tinha notado que ele não pretendia devora-la. O que não mudava em nada o fato de que sua mãe não gostaria.
      Tirou a cabeça da água e por isso demorou um pouco para notar que estava chorando. Como sua mãe ficaria quando notasse que Dafne não voltaria pra casa essa noite? E quando a procurasse e não a achasse? Kaled correu realmente rápido, nunca que sua mãe ou seus irmãos iriam encontra-la, nem se quisessem.
     Um aroma gostoso passou por suas narinas e quase ao mesmo tempo seu estomago roncou.
        Saiu da água e foi ver as roupas que estavam na cama. Dentre elas achou uma toalha pra se secar. As roupas nada mais eram do que uma camisa enorme, pelo menos pra ela, e uma calça cortada para ficar do seu tamanho. Mesmo com o corte na calça não mudava o fato que a cintura era muito maior que a dela. Foi nisso que ela também notou uma corda sobre a cama. Usou-a para prender a calça.
       Achando-se ridícula com aquela roupa, saiu do quarto e seguiu o cheiro gostoso até o que devia ser a cozinha. She preparava algo no fogão a lenha e se notou a chegada de Dafne não demonstrou.
      Sem que ela pudesse controlar, seu estomago roncou. Isso despertou a atenção de She, mas quando olhou pra ela estava indiferente.
        – Sente-se, logo lhe sirvo algo pra comer. –  disse ele, voltando a olhar pro fogão.  
        Dafne não respondeu, mas se sentou obediente. Sentou-se em uma das quatro cadeiras de madeira que rodeavam a mesa. Está mesa se localizava no centro da cozinha, e era redonda a cadeira em que Dafne sentou estava de frente para janela. Ela olhou nervosa, mas não viu o que queria. Kaled.
       She colocou a sua frente um prato. Nele fervia uma sopa de ótima aparência, que fez Dafne se exaltar de prazer. Logo que She lhe entregou uma colher, começou a devorar a sopa. Não reparou em mais nada além de sua fome por um tempo. O prato ficou vazio, mas a fome não passara.
       She pareceu notar isso, recolheu o prato e serviu mais á ela. Desta vez Dafne se portou melhor, comeu com mais calma e olhando de vez em quando para She. Este estava parado de encosto a pia e não tirava os olhos de Dafne. Estudava-a em detalhes com seus olhos, eram olhos espertos e duros. Dafne não pode deixar de sentir mais medo.
         – Onde está Kaled? – perguntou Dafne para afastar o medo.
         – Lá fora, em algum lugar que não vá congelar minha horta. – respondeu She seco e sem tirar os olhos dela.
          – O que é Kaled exatamente? – Dafne perguntou criando coragem. Dessa vez ele desviou o olhar antes de responder.
         – Kaled é o que é. – começou ele meio confuso com a pergunta. – E não creio que esteja na hora de pensar nisso, mas cedo ou mais tarde vai saber, e prefiro que seja por ele e não por mim. – She concluiu por fim.
         – Ele disse que logo vai embora... – Dafne aproveitou. Ele voltou-se para ela novamente. – E que me deixaria aqui.
        – Sim, ele também me disse isso. – Agora She estava irritado. – Não tenho escolha quanto a isso, mas vou fazer o possível em sua estadia aqui.
          – E de quanto tempo estamos falando? – Dafne perguntou, chegando ao ponto que temia.
She olhou pra ela. Dessa vez seu olhar era mais calmo, como se soubesse o que a preocupava.
           – Não creio que voltarás pra casa, menina – disse ele por fim.
          – Não? Mas por que não? O que querem comigo afinal? Por que Kaled me trouxe aqui? – agora Dafne estava assustada e tremia. O choro ia voltar.
          – Kaled a trouxe porque acha que você é o que procuramos, e admito ter que concordar. Só não esperava tão jovem e isso vai nos custar tempo. – ele ainda estava com a boca aberta, como se fosse continuar. E continuou, mas com a face mais calma. – Termine de comer, e depois vá dormir um pouco. Essa corrida com Kaled deve ter sido cansativa, não? Deixe as perguntas com o tempo.
          – Está bem. – concordou Dafne, voltando a olhar o prato. Ainda estava confusa e com medo, mas não chorou.

KALED


Correr para o lugar que lhe causava tanto medo não foi fácil. Mas Chad não voltou pra casa e o medo que sentiu lá antes fez com que pensasse coisas horríveis. Estava acontecendo algo, não sabia o que, nem porque ali.
E se realmente tiver acontecido algo com Chad? O que ela ia fazer?
Parou
Pela primeira vez notou o quão foi idiota ir até ali. Estava na entrada da trilha que levava ou lago. O sol já estava alto no céu, mesmo assim a trilha estava escura e um vento frio vinha de dentro dela.
Entrou.
Entrou sem olhar pra trás. Se voltasse teria que encarar a mãe e os irmãos, que lhe culpariam pelo sumiço do Chad. Então não tinha nada a perder. O frio penetrou até seu osso, misturando-se com o medo. Nunca sentiu algo parecido, continuou andando. Estava curiosa também, sempre tinha ido até o lago e sempre pelo mesmo caminho. Agora, algo que até mais cedo era tão comum estava completamente diferente.
Pelo frio intenso as árvores estavam com uma camada fina de gelo, a pequena trilha até o lago estava entre uma espessa neblina. Só conseguiu andar por conhece-la bem. Quando chegou a beira do lago se agachou para tocá-lo. Congelado.
– Chad... – As lagrimas voltaram ao seu rosto, sem poder se conter começou a soluçar alto. Aquilo tudo era tão absurdo... Tão confuso.
Crack.
O choro cessa. Dafne ouviu o barulho. Era de um galho quebrando, como se ao peso de um corpo maior. O barulho foi perto, na verdade, veio bem da sua frente. Não ousou respirar enquanto levantava a cabeça para olhar. Destacados na densa neblina, olhos a encaravam, olhos de um vermelho vivo, como se estivesse em chamas.
Olhos demoníacos, mesmo que estivesse um calor de meio-dia, ela teria gelado com aquele olhar. Viu nele o seu fim. Aqueles olhos desejavam seu sangue. Chad tinha visto esses olhos? Se viu, o que aconteceu depois?
– Chad está em casa.
A voz era poderosa fez Dafne estremecer completamente. Mas a mensagem foi clara. Chad estava em casa, não seria ela a duvidar do dono daquele olhar. Que alias, não piscavam e não paravam de fitar do rosto dela.  Por algum motivo, o fato de Chad não estar em casa não aliviou em nada o medo dela. Se, pelo menos, a criatura desviasse o olhar. Será que era uma criatura mesmo? Ou era só o olhar suspenso na neblina? Onde estava o corpo? Bom, se fala deve ter corpo. Tentou raciocinar a menina.
– Sabes falar? – A voz trovejou em seus ouvidos.
– S-sim – Dafne gaguejou surpresa por conseguir falar.
A criatura deu um risinho baixo, e seu olhar de fogo pareceu mais receptivo, o que foi altamente surpreendente.
– Chamo-me Kaled. Qual seu nome, menina?
– É-é Dafne, senhor.
– Hum. Pois bem, Dafne. EU permiti que seu irmão partisse, mas só porquê tive certeza de que estavas a caminho. Agora lhe pergunto: Aceitas tomar o lugar que ia dar a teu irmão?
Maldição. O que responder? Tinha vindo ali pra isso, não? O que mais ia poder fazer por seu irmão? Mas o que essa criatura queria afinal? Se fosse por comida, bom, ela era pequena e magra, seu irmão era muito mais corpulento... Droga! No que estava pensando?!
– Sim, aceito. – E fechou os olhos esperando o pior.
– E então? Não vais vir?
Quando abriu os olhos a criatura não estava mais a sua frente, estava mais distante no que devia ser a outra margem do lago. “Pelo menos não vai me devorar... não agora”. Tomou coragem, se levantou e foi até ele. As pernas estavam bambas, mas seguiram obedientes. A criatura ainda olhava pra ela. Ouve mais um risinho baixo e os olhos sumiram. Dafne parou. Assustada. Sem aqueles olhos estava presa em um mundo branco e frio, sem mais nada a sua volta.
Manteve o olhar onde a pouco estavam os olhos, e ficaria ali pra sempre. Esperando. Mas eles voltaram a aparecer e dessa vez estavam confusos.
– Pensei que estava vindo! – Reclamou a voz poderosa.
– Perdão. Perdi-te de vista.
– Como? – Resmungou Kaled.
– Não te vi mais, não sabia pra onde ir.
Dafne ouviu um suspiro baixo e com terror percebeu que Kaled estava vindo até ela novamente. Muito perto.
– Não pode me ver, é isso? – Perguntou Kaled, mas em um tom de quem não queria resposta. – Pois bem, pode subir.
– C-como?
– Vai ficar gaguejando sempre? Suba de uma vez! – trovejou Kaled irritado.
– Mas subir aonde? Tem onde subir em você?
– Claro q... – Começou Kaled com raiva, mas pareceu se conter. – Sim, menina. Tem onde subir. – Outro suspiro. – Toque entre meus olhos pra começar.
Ela, timidamente, ergueu a mão em direção ao que estava entre os olhos em chamas. Ficou surpresa ao tocar em um pelo macio e incrivelmente gelado. Sentiu as pontas dos dedos dormentes só no toque.
– Agora deslize a mão sobre meu corpo até chegar ao fim do meu pescoço.
– Certo. – Ela fez como ele pediu. Deixou sua mão vagar pelo que pareceu um focinho de cachorro, só que incrivelmente grande. Passou para a parte de baixo do focinho, indo em direção ao pescoço. Quando teve que mudar de posição e perdeu os olhos de vista, ela travou.
– Que foi agora, menina? – Quando perguntou os olhos se voltaram pra ela, Dafne notou o movimento dele com a mão. Era estranho ver os olhos se mexendo como se não tivessem corpo e ao mesmo tempo sentir com o tato o corpo ausente na visão.
Ignorou a pergunta dele e continuou. Ele era realmente macio, sua mão afundou no pelo do pescoço chegando perto da pele. Soube mesmo não podendo ver que ele era imenso. E quando finalmente chegou ao fim do pescoço percebeu o que ele estava falando quando a pediu para subir.
Seja o que fosse Kaled, era um quadrúpede, e por ser tão grande poderia ser montado. Só havia um problema. A parte do pescoço que ela estava tocando era a parte inferior, perto da pata e onde teria que subir para montar era alto demais. Só pra ter uma ideia ela espichou a mão, bom se ele tinha um fim pra cima, a mão dela não chegava nem perto.
– Hã... Kaled? – chamou Dafne, sem ter certeza se deveria usar o nome dele.
– Sim? Perguntou ele, ainda olhando pra ela.
– Eu... Bom, eu não consigo subir. – Admitiu.
Kaled suspirou mais uma vez, e com esse movimento seus olhos se fecharam, mais uns segundos de desespero para Dafne, mas foi questão de segundos. Os olhos dele voltaram a se abrir. E ela sentiu um movimento em seu corpo. Ele estava deitando no lago congelado.
– Agora suba.
– Certo. – Ela respondeu aliviada. Mas mesmo ele deitado era ainda muito alto. Teve que se apoiar na pata dianteira dele para dar impulso. Como ele não reclamou, ela continuou.
Sua perna mal alcançou o outro lado, teve que ficar grudada no pelo dele, o que não era tão difícil, pois com o gelo que ele era, as pernas dela congelaram onde estavam fácil. Olhou fundo nos olhos de Kaled, que ainda a observavam, mesmo com o esforço de ficar olhando pra trás, olhou bem neles, respirou fundo e assentiu.
O branco geral voltou e junto com ele o movimento de Kaled. Por um momento Dafne achou que ficaria louca. Era como se mexer no nada, totalmente sem orientação. Kaled se levantou. Começou a andar, quer dizer, correr.
Em alguns segundos estavam em campo aberto, e pela primeira vez Dafne viu Kaled. Branco, um branco ofuscante, um branco magnífico que cobria todo o corpo majestoso dele. Lembrava muito um lobo, só que com o triplo, ou mais, do tamanho de um normal. Sua velocidade era incrível, muito mais incrível se for levado em conta o tamanho dele. Seu pelo macio cobria até as patas, que mesmo sendo imensas, não deixavam rastros graças sua velocidade, que também impedia de congelar onde quer que pisasse.
Ver ele provocou uma segurança e aumentou seu medo. Kaled era uma criatura sem duvida poderosa, mas por algum motivo teve certeza que ele não a faria mal. Com os passos ligeiros ele vagava pela mata fechada. Dafne sabia que não voltaria para casa. Será que seus irmãos iam procurar por ela? Ou teriam medo demais?
Dafne tinha medo de Kaled, mas sabia estar segura com ele. Enquanto ele a carregava cada vez mais longe do que sempre chamou de casa, não se sentiu nem um pouco arrependida de sua escolha. Morar com a mãe e com os irmãos não era o que queria. Será que indo com Kaled ia ter a vida que queria? “Meio tarde pra pensar nisso”.
Já estavam nessa corrida há um tempo e Dafne não sentia mais seu corpo. Foi quando se tocou disso que Kaled parou. Logo que parou a grama a sua volta começou a congelar. Ele deitou para que ela descesse. Dafne não conseguia mexer as pernas. Olhou para elas impotente.
– Acho que congelei em você – Indagou com a voz realmente decepcionada.
Kaled não respondeu. Levantou-se novamente e seguiu uma nova direção. Antes que Dafne se desse conta do que ia acontecer, Kaled se jogou contra a água de um rio. Com o impacto Dafne foi jogada para fora do corpo dele e com a água corrente em seu corpo a circulação foi voltando.
Olhou incrédula para Kaled, ainda estava se recuperando do susto e lutando pra nadar naquela água revoltosa, ele já estava fora da água, bem distante dela e se sacudia para se secar. Ver Kaled em uma situação dessas não deixou de ser engraçado. Ele estava todo molhado o que deixava seu branco um pouco mais escuro e o pelo grudado ao corpo mostrou o quanto ele era forte.
Dafne riu baixinho, não se contendo. Nadou até a margem em direção a Kaled ainda sorrindo. Os olhos de fogo dele a fitaram e Dafne notou neles um certo divertimento também. 

domingo, 19 de dezembro de 2010

Medo


         Encheu mais um balde de água. Era o terceiro que sua mãe lhe obrigava a pegar só naquela manhã. Isto a estava irritando, seus irmãos não tiveram que buscar água nenhuma vez. Tudo porque havia sido enganada por eles. Estava achando muito injusto isso, mas prometeu a si mesma que não choraria mais. Ficou sentada á beira do lago por uns segundos, olhando para céu e esperando as lagrimas não caíssem de seu rosto. Assim que se sentiu mais calma olhou seu reflexo no lago.
Podia não estar mais chorando, contudo seu rosto estava inchado e seus olhos vermelhos. Era tudo tão absurdo e não continha o choro. Seus irmãos sempre aprontavam com ela e a mãe sempre acreditava neles.
Botou a mão na água, desfazendo sua imagem, ela estava gelada, era normal que pela manhã a água estivesse gelada, mas agora estava muito mais do que há algumas horas. Um calafrio percorreu sua espinha. De súbito sentiu um medo avassalador. Tinha que sair dali, não sabia o que causava tanto medo só sabia que não queria ficar pra descobrir.
Pegou o balde e saiu correndo, não ligou para a água que caia, nem sabia porquê tinha pegado ele, talvez por costume. Correu. Passou pela trilha que levava á estrada. O medo ia passando aos poucos. Chegou a estrada. O balde já estava praticamente sem água.
A mãe não iria gostar disso, não mesmo.  Suspirou ainda correndo.
Dafne tinha dez anos, menina cheia de vida, com olhos intensos da mesma cor do cabelo, um castanho escuro e brilhante que ficava ainda mais belo em contraste com sua pele clara. Vivia com a mãe e os três irmãos, em uma casinha pequena deslocada da cidade. O pai morrera faz tempo, não chegou a conhecê-lo.
Graças a seus irmãos Dafne estava sempre em apuros, eles aprontavam e a culpavam, como a mãe estava sempre ocupada mal ouvia o que lhe falavam e como eles eram a maioria, ela acreditava. Então Dafne estava sempre de castigo, era comum ela ter que fazer os trabalhos domésticos ou coisas mais pesadas, como buscar a água.
Ainda estava correndo quando alguém barrou seu caminho. Era Chad. Seu irmão mais velho, tinha dezesseis anos e era o culpado por ela estar buscando água. Ele colocou um sorriso maldoso na face.
– Chad! Mano! Eu estava pegando água quando... – Começou a se explicar.
– Pelo visto vai ter que voltar, não? – Interferiu ele.
– Voltar? Mas, mano! A água estava tão fria e eu achei, bom... me deu um medo...
– Medo de água? – Perguntou ele com uma sobrancelha erguida.
– Não da água, eu tive a impressão...
– Não quero saber! A mãe vai ficar uma fera se tu não voltares com a água! Anda! Vai buscar e volte com uma desculpa melhor pela demora! – Chad interrompeu novamente.
Dafne ficou sem fala, não queria voltar. Ouvindo Chad falar pareceu mesmo que não tinha o que temer, mas mesmo assim, só pensar em voltar fez seu estomago embrulhar. Sem poder conter, as lágrimas voltaram a cair.
Chad revirou os olhos. Não ligava pra quando ela chorava, só achava irritante, mas mesmo assim pegou o balde da mão dela com brutalidade e saiu pela estrada sem olhar para a irmã novamente. Dafne foi esperta o bastante pra não agradecer, qualquer palavra sua provocaria uma raiva nele que ela não deseja atiçar. Ficou olhando ele até o perder de vista e voltou pra casa silenciosamente. Não podia ser vista antes de Chad voltar.
Viu Alex e Daniel, seus outros irmãos, brigando ou brincando, nunca sabia a diferença, na frente de casa. Passou por eles sem ser notada, entrou em casa e foi direto pro seu quarto.
Sozinha. Era assim que se sentia sempre. Não tinha amigos e seus irmãos não eram boas companhias. A mãe estava sempre fora e mesmo quando estava em casa era só para lhe mandar fazer mais coisas.
Não podia ir á cidade, era nova de mais e sua mãe não a levava com desculpa de que ia atrapalhar. Então sua vida se baseava em ficar naquela casinha e fazer o que lhe mandavam. Para seus irmãos era diferente. Eles tinham a si mesmos para brincar e ainda tinham a ela pra maltratar.
Ontem mesmo roubaram a única boneca que ela tinha e disseram que haviam colocado na floresta. Dafne não ficava sem a boneca e mesmo sendo noite se embrenhou na mata fechada. Não sabia se passou horas ou minutos lá, só sabia que ficou com medo e desesperada por sua boneca. E quando notou, Chad estava com ela, puxando-lhe pela orelha e a arrastando até sua mãe. Depois dessa teve que fazer mais muitas coisas, sem comentar ir buscar a água. E não teve a boneca de volta.
Mas agora não pensava na boneca. O medo que sentiu ontem pareceu até ridículo perto do de hoje. Por que saiu correndo daquele jeito? O que fez a água ficar tão fria? O medo foi da água?
Ficou um bom tempo pensando nessas perguntas, tempo demais. Ouviu a mãe chegar em casa e ir pra cozinha. Ouviu Alex e Daniel entrarem logo depois. E o tempo passou. E a pergunta chegou.
– Onde estão Chad e Dafne? – Perguntou a mãe.
Chad? Onde estava Chad? Ele já devia ter chegado. Passos soaram dentro de casa. E estavam se dirigindo ao quarto dela...
Agora a o medo foi diferente, se descobrissem que ela estava em casa iam perguntar pela água e se perguntarem pela água iam saber sobre Chad, aí ela seria culpada de novo.
Não pensou duas vezes. Saiu pela janela antes que abrissem a porta. Ia achar Chad antes que a achassem. E descobrir porque ele não voltou. Mas para isso teria que voltar ao lago. Gelou. Mas continuou correndo.

Prólogo

Durante eras as Seis Terras foram protegidas por seus guardiões. Suas terras, seus segredos, sua magia...
Nunca a raça humana havia pisado sobre qualquer uma das Terras. Talvez por estarem perdidas nos oceanos, longe de qualquer civilização. Talvez pelas ilusões dos espíritos que evitavam qualquer navegação de chegar perto...
Mas uma embarcação pequena chamou a atenção de certa Guardiã e de seus espíritos... Um som diferente , como o choro de um animal pequeno. Muito diferente de qualquer criatura que ela protegia em sua Terra.
Perks, o espírito que se encontrava perto da costa permitiu que o pequeno barco atracasse em seu território, a comando da Guardiã.
O pequeno barco continha uma família. Jair, o pai, foi banido de seu país com a sua família por assassinato.  Célia, a mãe, já havia sido presa três vezes por furtos nas casas que trabalhava como criada. Edgar, o filho mais velho participou do assassinato junto com o pai. Regina, a filha caçula de dezessete anos com uma criança de 5 meses no colo, era a culpada pelo assassinato.
Ajudando a mãe na em uma das grandes casas de sua cidade Regina enamorara um dos senhores da casa. A gravidez da filha provocou a ira de Jair que junto com o filho Edgar assassinou o jovem.
A família do rapaz conseguiu que exilassem os assassinos assim que foi provada a culpa pelo assassinato. Nessa altura a criança já tinha nascido e como Célia não permitiu que Jair matasse o inocente bebê esse proibiu que dessem nome à criança.
Colocados em um pequeno barco com poucas provisões a família de assassinos foi solta no oceano muito distante de qualquer ilha ou continente.
Mas racionando as poucas provisões mantiveram-se vivos por 3 meses. E chegaram perto das Seis Terras. A criança que já não comia, pois a mãe, por falta de alimento, não produzia mais leite, chorava. Seu choro enchia o ar. Ninguém mais reclamava, como Jair costumava fazer.  Não, deixaram o choro fluir, como a musica fúnebre perfeita para o fim de suas vidas.
E fizeram bem em não calar a criança cujo choro não fora feito para embalar os últimos dias de sua família, mas sim para aquecer o coração da Guardiã da Sexta Terra.
Perks aguardou na praia pelo barco. E sentiu a fúria da Guardiã quando esta notou que o animal que produzira o choro não estava só.
Eufóricos com a chegada em terra firme. Jair, Edgar e Célia pularam do barco e se puseram a beijar a areia da praia. Apenas Regina permaneceu no barco. Apertando a criança, que já não chorava, em seus braços e fitando uma grande tartaruga que se encontrava na praia, também a fitando. Ou estaria fitando sua filha?
Por algum motivo não encontrou sua voz para berrar. Mas encontrou algo em sua mente, um estranho desejo de entregar sua filha para a tartaruga e convencer seus pais de ir embora. Parte de si sabia que isso era ridículo e desejou ardentemente matar a tartaruga.
Sem poder se controlar desceu do barco foi andando até o animal. Ódio e desespero tomaram conta de seu corpo e lágrimas quentes brotaram de seus olhos quando largou a criança em uma cavidade no casco do animal.
Lentamente se afastou da tartaruga, enquanto esta mais lentamente ainda se afastava da praia, com a criança em seu casco.
Regina olhou para trás e avistou seus pais e seu irmão levando o barco de volta para água e chamando por ela. Soube imediatamente que a mesma coisa estranha que se apossava dela, estava neles também. E logo o desejo de ir embora foi grande, maior do que o comando que era dado. Era medo. Medo daquela terra. Medo tão grande que fez ela correr para o barco sem olhar para traz. Esquecendo de vez sua filha.
O Guardião da Quinta Terra sentiu a dor de Regina quando o barco passava perto de sua costa e igualmente como a Guardiã da Sexta Terra, permitiu a entrada deles no território de um de seus espíritos. Contudo não os mandou embora. Manteve-os consigo como uma de suas criaturas, mas não demoraria a notar o quando o ser humano pode ser diferente dos animais que protegia...
A criança foi levada por Perks para sua Guardiã, que recebeu a criança maravilhada ao notar que esta não congelava perto de si. Criou-a por anos com mais amor do que já havia cuidado de sua Terra e quando se sentiu cansada concebeu sua tarefa de Guardiã para a Grande Mãe; como passou a ser chamada a menina séculos depois...