segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

KALED


Correr para o lugar que lhe causava tanto medo não foi fácil. Mas Chad não voltou pra casa e o medo que sentiu lá antes fez com que pensasse coisas horríveis. Estava acontecendo algo, não sabia o que, nem porque ali.
E se realmente tiver acontecido algo com Chad? O que ela ia fazer?
Parou
Pela primeira vez notou o quão foi idiota ir até ali. Estava na entrada da trilha que levava ou lago. O sol já estava alto no céu, mesmo assim a trilha estava escura e um vento frio vinha de dentro dela.
Entrou.
Entrou sem olhar pra trás. Se voltasse teria que encarar a mãe e os irmãos, que lhe culpariam pelo sumiço do Chad. Então não tinha nada a perder. O frio penetrou até seu osso, misturando-se com o medo. Nunca sentiu algo parecido, continuou andando. Estava curiosa também, sempre tinha ido até o lago e sempre pelo mesmo caminho. Agora, algo que até mais cedo era tão comum estava completamente diferente.
Pelo frio intenso as árvores estavam com uma camada fina de gelo, a pequena trilha até o lago estava entre uma espessa neblina. Só conseguiu andar por conhece-la bem. Quando chegou a beira do lago se agachou para tocá-lo. Congelado.
– Chad... – As lagrimas voltaram ao seu rosto, sem poder se conter começou a soluçar alto. Aquilo tudo era tão absurdo... Tão confuso.
Crack.
O choro cessa. Dafne ouviu o barulho. Era de um galho quebrando, como se ao peso de um corpo maior. O barulho foi perto, na verdade, veio bem da sua frente. Não ousou respirar enquanto levantava a cabeça para olhar. Destacados na densa neblina, olhos a encaravam, olhos de um vermelho vivo, como se estivesse em chamas.
Olhos demoníacos, mesmo que estivesse um calor de meio-dia, ela teria gelado com aquele olhar. Viu nele o seu fim. Aqueles olhos desejavam seu sangue. Chad tinha visto esses olhos? Se viu, o que aconteceu depois?
– Chad está em casa.
A voz era poderosa fez Dafne estremecer completamente. Mas a mensagem foi clara. Chad estava em casa, não seria ela a duvidar do dono daquele olhar. Que alias, não piscavam e não paravam de fitar do rosto dela.  Por algum motivo, o fato de Chad não estar em casa não aliviou em nada o medo dela. Se, pelo menos, a criatura desviasse o olhar. Será que era uma criatura mesmo? Ou era só o olhar suspenso na neblina? Onde estava o corpo? Bom, se fala deve ter corpo. Tentou raciocinar a menina.
– Sabes falar? – A voz trovejou em seus ouvidos.
– S-sim – Dafne gaguejou surpresa por conseguir falar.
A criatura deu um risinho baixo, e seu olhar de fogo pareceu mais receptivo, o que foi altamente surpreendente.
– Chamo-me Kaled. Qual seu nome, menina?
– É-é Dafne, senhor.
– Hum. Pois bem, Dafne. EU permiti que seu irmão partisse, mas só porquê tive certeza de que estavas a caminho. Agora lhe pergunto: Aceitas tomar o lugar que ia dar a teu irmão?
Maldição. O que responder? Tinha vindo ali pra isso, não? O que mais ia poder fazer por seu irmão? Mas o que essa criatura queria afinal? Se fosse por comida, bom, ela era pequena e magra, seu irmão era muito mais corpulento... Droga! No que estava pensando?!
– Sim, aceito. – E fechou os olhos esperando o pior.
– E então? Não vais vir?
Quando abriu os olhos a criatura não estava mais a sua frente, estava mais distante no que devia ser a outra margem do lago. “Pelo menos não vai me devorar... não agora”. Tomou coragem, se levantou e foi até ele. As pernas estavam bambas, mas seguiram obedientes. A criatura ainda olhava pra ela. Ouve mais um risinho baixo e os olhos sumiram. Dafne parou. Assustada. Sem aqueles olhos estava presa em um mundo branco e frio, sem mais nada a sua volta.
Manteve o olhar onde a pouco estavam os olhos, e ficaria ali pra sempre. Esperando. Mas eles voltaram a aparecer e dessa vez estavam confusos.
– Pensei que estava vindo! – Reclamou a voz poderosa.
– Perdão. Perdi-te de vista.
– Como? – Resmungou Kaled.
– Não te vi mais, não sabia pra onde ir.
Dafne ouviu um suspiro baixo e com terror percebeu que Kaled estava vindo até ela novamente. Muito perto.
– Não pode me ver, é isso? – Perguntou Kaled, mas em um tom de quem não queria resposta. – Pois bem, pode subir.
– C-como?
– Vai ficar gaguejando sempre? Suba de uma vez! – trovejou Kaled irritado.
– Mas subir aonde? Tem onde subir em você?
– Claro q... – Começou Kaled com raiva, mas pareceu se conter. – Sim, menina. Tem onde subir. – Outro suspiro. – Toque entre meus olhos pra começar.
Ela, timidamente, ergueu a mão em direção ao que estava entre os olhos em chamas. Ficou surpresa ao tocar em um pelo macio e incrivelmente gelado. Sentiu as pontas dos dedos dormentes só no toque.
– Agora deslize a mão sobre meu corpo até chegar ao fim do meu pescoço.
– Certo. – Ela fez como ele pediu. Deixou sua mão vagar pelo que pareceu um focinho de cachorro, só que incrivelmente grande. Passou para a parte de baixo do focinho, indo em direção ao pescoço. Quando teve que mudar de posição e perdeu os olhos de vista, ela travou.
– Que foi agora, menina? – Quando perguntou os olhos se voltaram pra ela, Dafne notou o movimento dele com a mão. Era estranho ver os olhos se mexendo como se não tivessem corpo e ao mesmo tempo sentir com o tato o corpo ausente na visão.
Ignorou a pergunta dele e continuou. Ele era realmente macio, sua mão afundou no pelo do pescoço chegando perto da pele. Soube mesmo não podendo ver que ele era imenso. E quando finalmente chegou ao fim do pescoço percebeu o que ele estava falando quando a pediu para subir.
Seja o que fosse Kaled, era um quadrúpede, e por ser tão grande poderia ser montado. Só havia um problema. A parte do pescoço que ela estava tocando era a parte inferior, perto da pata e onde teria que subir para montar era alto demais. Só pra ter uma ideia ela espichou a mão, bom se ele tinha um fim pra cima, a mão dela não chegava nem perto.
– Hã... Kaled? – chamou Dafne, sem ter certeza se deveria usar o nome dele.
– Sim? Perguntou ele, ainda olhando pra ela.
– Eu... Bom, eu não consigo subir. – Admitiu.
Kaled suspirou mais uma vez, e com esse movimento seus olhos se fecharam, mais uns segundos de desespero para Dafne, mas foi questão de segundos. Os olhos dele voltaram a se abrir. E ela sentiu um movimento em seu corpo. Ele estava deitando no lago congelado.
– Agora suba.
– Certo. – Ela respondeu aliviada. Mas mesmo ele deitado era ainda muito alto. Teve que se apoiar na pata dianteira dele para dar impulso. Como ele não reclamou, ela continuou.
Sua perna mal alcançou o outro lado, teve que ficar grudada no pelo dele, o que não era tão difícil, pois com o gelo que ele era, as pernas dela congelaram onde estavam fácil. Olhou fundo nos olhos de Kaled, que ainda a observavam, mesmo com o esforço de ficar olhando pra trás, olhou bem neles, respirou fundo e assentiu.
O branco geral voltou e junto com ele o movimento de Kaled. Por um momento Dafne achou que ficaria louca. Era como se mexer no nada, totalmente sem orientação. Kaled se levantou. Começou a andar, quer dizer, correr.
Em alguns segundos estavam em campo aberto, e pela primeira vez Dafne viu Kaled. Branco, um branco ofuscante, um branco magnífico que cobria todo o corpo majestoso dele. Lembrava muito um lobo, só que com o triplo, ou mais, do tamanho de um normal. Sua velocidade era incrível, muito mais incrível se for levado em conta o tamanho dele. Seu pelo macio cobria até as patas, que mesmo sendo imensas, não deixavam rastros graças sua velocidade, que também impedia de congelar onde quer que pisasse.
Ver ele provocou uma segurança e aumentou seu medo. Kaled era uma criatura sem duvida poderosa, mas por algum motivo teve certeza que ele não a faria mal. Com os passos ligeiros ele vagava pela mata fechada. Dafne sabia que não voltaria para casa. Será que seus irmãos iam procurar por ela? Ou teriam medo demais?
Dafne tinha medo de Kaled, mas sabia estar segura com ele. Enquanto ele a carregava cada vez mais longe do que sempre chamou de casa, não se sentiu nem um pouco arrependida de sua escolha. Morar com a mãe e com os irmãos não era o que queria. Será que indo com Kaled ia ter a vida que queria? “Meio tarde pra pensar nisso”.
Já estavam nessa corrida há um tempo e Dafne não sentia mais seu corpo. Foi quando se tocou disso que Kaled parou. Logo que parou a grama a sua volta começou a congelar. Ele deitou para que ela descesse. Dafne não conseguia mexer as pernas. Olhou para elas impotente.
– Acho que congelei em você – Indagou com a voz realmente decepcionada.
Kaled não respondeu. Levantou-se novamente e seguiu uma nova direção. Antes que Dafne se desse conta do que ia acontecer, Kaled se jogou contra a água de um rio. Com o impacto Dafne foi jogada para fora do corpo dele e com a água corrente em seu corpo a circulação foi voltando.
Olhou incrédula para Kaled, ainda estava se recuperando do susto e lutando pra nadar naquela água revoltosa, ele já estava fora da água, bem distante dela e se sacudia para se secar. Ver Kaled em uma situação dessas não deixou de ser engraçado. Ele estava todo molhado o que deixava seu branco um pouco mais escuro e o pelo grudado ao corpo mostrou o quanto ele era forte.
Dafne riu baixinho, não se contendo. Nadou até a margem em direção a Kaled ainda sorrindo. Os olhos de fogo dele a fitaram e Dafne notou neles um certo divertimento também. 

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